O desafio de manter jovens no ensino médio, principal obstáculo à universalização da educação
Garantir que os adolescentes brasileiros permaneçam na escola nos anos finais do ensino médio é o principal desafio para que o Brasil consiga universalizar o acesso à educação básica. Isso porque, de acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a evasão escolar continua a afetar, sobretudo, jovens na faixa etária dos 15 a 17.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), divulgados na quarta-feira (19) mostram que no ano passado, 11,8% dos jovens nesta faixa etária estavam fora da escola, o equivalente a 1,1 milhão de pessoas, apesar de o Plano Nacional de Educação (PNE), de 2014, ter estabelecido a meta de universalizar o atendimento à população de 15 a 17 anos até 2016. A pesquisa mostra também que a taxa de frequência escolar para alunos no grupo etário aumentou um ponto percentual em relação aos dois anos anteriores, passando para 88,2% em 2018, ou um total de 8,6 milhões de jovens de 15 a 17 anos.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, o Estado tem obrigação de oferecer ensino fundamental e médio para todos os brasileiros. Embora algumas iniciativas tenham sido lançadas nas últimas décadas para atingir este objetivo, especialistas consultados pela BBC News dizem que os avanços ainda foram bem desiguais, variando bastante de Estado para Estado. A meta de universalização ainda não foi alcançada por nenhuma região brasileira.
A evasão escolar traz prejuízos não apenas para os jovens como também para a sociedade, e faz com que o Brasil desperdice R$ 35 bilhões ao ano – valor calculado a partir da renda do trabalho ao longo da vida a partir da conclusão do ensino médio. A estimativa é de um estudo do Instituto Ayrton Senna, Insper, Instituto Unibanco e Fundação Brava.
Os dados que indicam evasão escolar, na visão dos especialistas, merecem especial atenção porque se referem a uma população que ainda está em idade de formação, prestes a entrar no mercado de trabalho.
“O vilão sempre foi o ensino médio”, diz analista da Pnad Educação, Marina Águas.
Na faixa de 6 a 14 anos, o levantamento indicou que 99,3% das crianças estavam nas escolas em 2018 – o que, segundo a analista do IBGE equivale praticamente à universalização, situação que se apresenta desde 2016 (nos últimos dois anos, a taxa foi de 99,2%).
Os dados da Pnad Educação indicam tendência moderada de melhora no setor de 2016 para cá. A taxa de analfabetismo caiu de 7,2% em 2016 para 6,8% em 2018. O número médio de anos de estudo na população subiu de 8,9 para 9,3 nos últimos dois anos.
Mas os dados expressam grande disparidade regional. Nos dados sobre analfabetismo, por exemplo, o índice no Nordeste é de 13,8%, contra 3,63% no Sul.
A Pnad Educação não traz uma estatística específica sobre evasão escolar. Mas quantifica o número de alunos fora da escola em idade de ensino obrigatório, e além disso traz dados sobre estudantes em situação de atraso escolar, ou seja, que repetiram anos no passado, o que ajuda a dimensionar o problema.
De acordo com a Pnad Educação, 69,3% dos jovens de 15 a 17 anos (0,8 ponto percentual a mais que em 2017) estavam na situação correta de ensino no ano passado. Ou seja, estavam cursando a série adequada para sua idade, ou já haviam concluído o ensino médio.
Segundo Marina Águas, isso que significa que os demais 30,7% ou estavam atrasados – ainda cursando séries do ensino fundamental – ou já haviam evadido a escola. Apesar de o problema da evasão se concentrar nos anos finais do ensino básico, ele reflete problemas que vão se acumulando ao longo de toda a formação escolar.
“Se as crianças já estão atrasadas no ensino fundamental, quando chegam no ensino médio as chances de permanecerem defasadas e decidirem sair é muito maior”, aponta a analista do IBGE.
Evasão escolar
O estudo Políticas Públicas para Redução do Abandono e Evasão Escolar de Jovens, publicado em 2017 pelo Instituto Ayrton Senna, Insper, Instituto Unibanco e Fundação Brava, estima que 2,8 milhões de pessoas de 15 a 17 anos abandonem a escola a cada ano.
A pesquisa descreve o problema como uma “tragédia silenciosa” que tem forte impacto para a trajetória individual desses jovens e para o país como um todo.
No ritmo atual de inclusão de jovens no ensino médio, o Brasil precisará de 200 anos para atingir a meta de universalizar o atendimento escolar para esse grupo, de acordo com o estudo, conduzido pelo economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e professor do Insper, Ricardo Paes de Barros.
De acordo com Laura Machado, especialista da Cátedra Instituto Ayrton Senna no Insper, o percentual de jovens de 15 a 17 anos fora do ensino médio tem se mantido no mesmo patamar ao longo da última década, sem tendência expressiva de melhora.
“Infelizmente, a previsão é continuar do jeito que está, já que infelizmente a situação está estagnada há 10 anos”, diz à BBC News Brasil.
A evasão escolar está longe de ter uma causa única.
De acordo com Gabriel Corrêa, gerente de políticas educacionais do Todos Pela Educação, a decisão de um jovem de deixar a sala de aula pode ser motivada pela falta de engajamento com a escola, por falta de acesso a transporte, pela gravidez na adolescência, pela necessidade de entrar no mercado de trabalho ou pela defasagem no ensino acumulada dos anos anteriores, entre muitos outros fatores.
“Como a repetência é frequente no Brasil, muitos jovens chegam aos 17 ou 18 anos sem conhecimentos muito básicos que deveriam ter adquirido. E isso em escolas que não se conectam com o mundo ao seu redor, com a sua realidade. Nesses casos, a escola perde totalmente o sentido para o estudante jovem. Cada aluno que evade é sinal de um fracasso do sistema educacional em que deveria estar”, considera.
Maior engajamento
De acordo com Gabriel Corrêa, do Todos pela Educação, alguns Estados brasileiros têm se destacado no combate à evasão escolar. Como exemplos, ele cita o Espírito Santo e Pernambuco, que ao longo dos últimos cinco anos consecutivos registrou a menor taxa de abandono escolar do Brasil na rede estadual de ensino médio (1,5% em 2018, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira/ Inep, vinculado ao MEC). A melhora é relacionada a um programa de educação em tempo integral desenvolvido pelo MEC.
Corrêa considera que as mudanças curriculares do Novo Ensino Médio, aprovadas no ano passado, podem aumentar o engajamento dos alunos com a escola nessa fase da vida, potencialmente sanando um problema crítico para a evasão: o desinteresse dos alunos pela escola.
Com o novo modelo, o ensino médio deixará de ter um currículo único e passará a ter pelo menos 40% da carga horária dedicada a um currículo “customizado” de acordo com os interesses do aluno – que poderá se aprofundar, por exemplo, em disciplinas de humanas ou de exatas, e incluir cadeiras de ensino técnico profissionalizante, já preparando os estudantes para o mercado de trabalho.
As mudanças ainda estão sendo discutidas pelas secretarias estaduais de ensino e devem começar a ser implementadas na rede de ensino médio a partir do ano que vem.
“Se for bem implementado, estaremos indo em direção a sistemas educacionais mais avançados, e a expectativa é de aumentar o aprendizado e reduzir a evasão”, afirma Corrêa.
Da roça de volta para a escola
Diante da ampla gama de motivos para a evasão e da obrigatoriedade constitucional de que os alunos estejam na escola, programas de “busca ativa” fazem parte do esforço de Estados e municípios para identificar casos de evasão, indo atrás dos alunos que saíram e adotando as medidas necessárias para trazê-los de volta para a escola.
Um exemplo dessa abordagem é o Busca Ativa Escolar, uma plataforma lançada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em junho de 2017 e adotada por quase 3 mil municípios brasileiros como parte de suas estratégias para tentar mapear e resgatar crianças e adolescentes fora da escola.
Luan Carvalho da Silva Pires, de 17 anos, caminhava para se tornar um exemplo clássico de evasão escolar. Ele mora em um assentamento rural de 39 famílias em Piraí, município de 60 mil habitantes no interior do Rio, na região do Vale do Paraíba.
Levava quase duas horas para chegar na escola, enfrentando van, ônibus e um longo trecho da Rodovia Presidente Dutra em cada trecho. Já havia repetido de ano três vezes. Depois de concluir o 7º ano, em dezembro passado, decidiu que não queria mais voltar.
“Eu queria trabalhar. Em qualquer lugar. Para comprar as minhas coisas e ajudar em casa”, lembra o rapaz de 17 anos. Ele mora com a mãe, que trabalha na roça, o padrasto, que é ajudante de pedreiro, e os cinco irmãos.
Um agente municipal de saúde soube de seu caso. Registrou um alerta com o nome de Luan na plataforma digital do Busca Ativa Escolar. Depois de receber o alerta, a professora municipal Silvania Gonçalves Rocha, coordenadora do programa em Piraí, pegou a Kombi da Secretaria de Educação e bateu em sua porta.
“Eu fui lá e contei a minha história”, diz Silvania. “Vim de uma família muito humilde, a minha mãe sempre me incentivou a estudar, e sempre conto que o único jeito de a gente mudar a vida é pelo estudo. O caminho que abre portas é pelos livros.”
Ela própria se tornou órfã do pai aos 8 anos e cresceu em uma família de sete irmãos, criados pela mãe, empregada doméstica. “Eu digo que vim de uma classe em que eu poderia ter desistido, e não desisti”, afirma.
Luan resistiu, e só foi convencido depois que Silvania prometeu encontrar uma vaga em uma escola mais próxima. Foi matriculado na Escola Municipal Lúcio de Mendonça, e agora leva 40 minutos para a escola em uma van da prefeitura que o busca em casa.
Está matriculado no 8.º ano do ensino fundamental – três séries a menos do previsto para a sua idade. Mas se diz animado com a escola nova e correndo atrás dos dois meses de aula que perdeu no início do ano.
“Está bom, né? Estou trabalhando para recuperar. Agora quero estudar”, diz ele. “Queria ser veterinário. Tenho meus bichos aqui na roça” – diz, e é possível ouvir galinhas cacarejando à sua volta enquanto conversa por telefone com a reportagem. “Está na hora de elas comerem de novo”, comenta rindo.
Mas feliz mesmo com o retorno do menino para a escola ficou sua mãe, Cirlene da Silva Pires. “Apesar da gente morar na roça, meu sonho é ver meus filhos formados. Para eles não passarem o que a gente passa. A vida na roça é muito dura”, diz a mãe.
Contra a violência
De acordo com o chefe de Educação do Unicef no Brasil, Ítalo Dutra, para funcionar, o programa de busca ativa depende do engajamento público em vários níveis. Deve envolver secretarias de Educação, Saúde e Assistência Social, associações de moradores e conselhos tutelares do Ministério Público – tanto para mapear os alunos fora da escola quanto para sanar os obstáculos que se apresentam.
Ele ressalta que combater a evasão escolar é também uma forma de proteger crianças e adolescentes contra a exposição a violência e contra violações de direitos.
“Em geral as violências mais extremas, letais, armadas, são parte de uma história de privações de direitos que começam muito antes”, diz Dutra. “O direito à educação abre portas para a garantia de direitos.”
Yan de Oliveira Rosa Aureliano, de 18 anos, tinha desistido de estudar por causa da violência em Paraty, mas acabou voltando para a escola com ajuda do programa.
Ele mora em Trindade, uma vila de pescadores na costa do Rio, mas só obtivera vaga no centro de Paraty, no turno da noite, a 25 km de distância. Seus pais foram contra, temendo a violência que aumenta na região.
Ele passou mais de um semestre sem aulas, até que uma agente comunitária soube de seu caso e registrou-o no sistema. Acabou sendo alocado em uma turma do Educação para Jovens e Alunos, recém-aberta em Trindade.
Yan voltou para a escola em setembro. Está cursando o 9º ano na Escola Municipal Saulo Alves da Silva. Seus colegas de turma têm entre 16 e 60 anos.
“Agora as aulas são a 50 metros da minha casa”, comemora ele. “Acho que foi muito bom para mim. Preciso mesmo terminar os meus estudos.”
Yan diz que desde criança deseja estudar biologia marinha, e não sente falta dos dias fora da escola. “Eu não tinha nada para fazer. Ficava entediado o dia inteiro.”
Fonte: Júlia Dias Carneiro – BBC News Brasil
Data: 20/06/2019