Quais as mudanças que a BNCC propõe para a Educação Infantil e como colocá-las na prática?
Na Educação Infantil é comum os professores realizarem atividades com as crianças pequenas envolvendo os mais diversos tipos de meleca. Na EMEI Arco-Íris, em Lagoinha, no interior de São Paulo, os educadores preparavam antecipadamente a meleca, que era levada para as turmas de 2 e 3 anos brincarem. Essa postura mudou após reflexões sobre as propostas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada no fim de 2017. “Agora, reconhecemos o papel ativo das crianças desde que elas nascem”, diz Claudiane Araújo, coordenadora pedagógica da creche. No caso da meleca, isso significa apresentar e deixar as crianças perceberem as texturas de cada ingrediente, orientá-las para que elas mesmas façam a mistura e observem as transformações, além de oferecer tempo para a exploração do material.
Ao provocar esse movimento de revisão na maneira de construir as atividades para as crianças – colocando-as bem no centro do processo de aprendizagem –, a BNCC amplia o alcance das propostas já presentes nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNE), de 2009, e que foram aprofundadas nesse novo documento para o currículo.
A Base também reforça a ideia de especificidade do processo de ensino e aprendizagem das crianças de 0 a 3 anos ao organizar os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento em três grupos de faixas etárias: bebês (zero a 1 ano e 6 meses), crianças bem pequenas (1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses) e crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses). “Criar essa divisão é colocar uma lente de aumento inédita em bebês e crianças bem pequenas. Antes, a ênfase maior era nas crianças de 4 e 5 anos”, diz Karina Rizek, formadora da Escola de Educadores e especialista do Time de Autores de Educação Infantil de NOVA ESCOLA. Essa atenção inédita é uma maneira de valorizar e nomear o que é próprio dessa idade.
“O atendimento público obrigatório começa aos 4 anos, mas a infância não. Os processos que uma criança vai viver nessa faixa etária têm início na fase anterior. Assim, o modo como a Base sugere que os currículos sejam pensados aponta para o entendimento da necessidade de um percurso que vai do bebê até a criança de 5 anos e 11 meses”, explica Silvana Augusto, formadora do Instituto Avisa Lá e coordenadora da pós-graduação em Educação Infantil no Instituto Singularidades. É concretizar a ideia de que a progressão das aprendizagens e das conquistas deve ser desenvolvida ao longo deste segmento da Educação.
Estrutura da Base
E como considerar as particularidades de bebês e crianças bem pequenas? Antes de chegarmos neste ponto, é necessário entender a elaboração da BNCC, que propõe uma mudança de perspectiva, em que o foco sai do modelo no qual o professor era detentor de conhecimento e a criança era a receptora de tudo que ele escolhesse transmitir – com currículos pautados nas áreas de conhecimento. Agora, o documento reconhece e registra o trabalho que já vinha sendo proposto por educadores e pesquisadores no qual a criança, em especial as experiências dela, é protagonista do processo de aprendizagem e desenvolvimento. Essa indicação de protagonismo já está contida nas dez competências gerais – que asseguram e promovem as aprendizagens essenciais para toda a Educação Básica e podem ser conhecidas em detalhes aqui. Na Educação Infantil, também se reflete na definição dos seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se. Colocá-los como parâmetros para a prática já traduz a ideia de uma criança com papel ativo. “Não é à toa que todos são verbos. Eles indicam que as experiências vêm da ação, de um fazer que está junto com sentimento, cognição etc.”, diz Silvana. Os professores precisam conhecê-los para garantir que eles estejam articulados, intencionalmente, em todo o planejamento pedagógico.
O documento também traz um arranjo composto de cinco campos de experiências, que englobam situações e experiências e aprendizagens essenciais para que a criança aprenda e se desenvolva. São eles: (1) O eu, o outro e o nós, (2) Corpo, gestos e movimentos, (3) Traços, sons, cores e formas, (4) Escuta, fala, pensamento e imaginação e (5) Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações. Neles estão definidos os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento para cada grupo etário. Os campos enfatizam noções, habilidades, comportamentos e valores a serem desenvolvidos ao longo da Educação Infantil e devem nortear o trabalho pedagógico. “Essa estrutura preserva a identidade da Educação Infantil e o modo próprio como a criança pensa o mundo, tem ideias e sente”, afirma Silvana. “É também um avanço por dialogar mais com questões do mundo contemporâneo, que é mais complexo e nos remete a pensar com mais atenção nas qualidades das nossas experiências. Hoje, as maneiras de aprender são mais diversificadas, pois atuamos com um número maior de linguagens e nos relacionamos com o tempo de maneira diferente”, completa.
Para completar, direitos, campos e objetivos giram em torno de dois eixos estruturantes para a elaboração dos currículos locais: interações e brincadeiras. “A criança pequena organiza ideias e sentimentos, compreende o mundo por meio da brincadeira. Com isso, não quero dizer que ela vai brincar para aprender. Ela já brinca e, porque faz isso, ela aprende. De certa maneira, brincar é a linguagem da criança. É algo tão importante que está na Base duas vezes: como eixo estruturante e como direito de aprendizagem”, explica Silvana. É por meio do brincar que a criança representa, imita, incorpora valores e hábitos culturais e aprende a conviver socialmente. E isso vale mesmo para o bebê, embora ele não brinque de faz de conta. “Até os 2 anos, a brincadeira é mais sensorial e exploratória com o próprio corpo, com objetos, adultos e outras crianças. A partir daí evolui para um jogo simbólico”, diz Karina.
“As interações estão presentes desde muito cedo, inclusive entre os próprios bebês, que percebem e reagem às ações do outro”, conta Silvana. “Ao observar as interações e a brincadeira entre as crianças e delas com os adultos, é possível identificar, por exemplo, a expressão dos afetos, a mediação das frustrações, a resolução de conflitos e a regulação das emoções”, afirma o texto introdutório da BNCC. Há também o papel do objeto, com o qual os bebês também interagem.
Experiência x vivência
Considerar as crianças ativas no processo de aprendizagem e valorizar suas experiências não quer dizer deixá-las entregues a seus próprios recursos, totalmente livres, esperando que o desenvolvimento ocorra de maneira espontânea. “Não falamos de quaisquer experiências, mas daquelas de aprender, crescer e se ver autônomo no mundo”, explica a formadora do Instituto Avisa Lá.
Qualificar as experiências exige intencionalidade. E também regularidade para que não se tornem apenas vivências. “A vivência é uma situação mais passiva, algo que simplesmente acontece. A experiência envolve um saber sobre a vivência. Ela toca o sujeito e altera seu estado, que sai modificado”, explica Silvana. Por isso, não adianta oferecer a cada dia uma atividade diferente, sempre com materiais e recursos variados. Criar condições para a criança construir boas experiências é dar oportunidade para ela fazer a atividade mais de uma vez, olhar sobre outro ponto de vista, testar se o que fez com um material vai funcionar em outra ocasião e com outro material. Ao viver várias vezes a mesma situação é que ela constrói a aprendizagem e se apropria de conceitos e saberes. “Isso tem tudo a ver com a forma que a gente aprende. É como dirigir, por exemplo. Primeiro seguimos a receita. Mas só quando dirigimos muitas vezes, em diferentes lugares e com vários veículos é que nos tornamos efetivamente experientes”, diz Karina Rizek.
E como fazer isto na prática? Com planejamento. Uma dica, compartilha Silvana, é pensar em situações de inovação e outras de continuidade. A alteração na estratégia de ensino realizada na atividade com meleca citada no início desta reportagem, por exemplo, contemplou os direitos de participar, explorar e brincar, com potencial para os demais de expressar, conhecer-se e comunicar. Ou seja, ainda que aparentemente simples, já transformou significativamente a experiência das crianças. Porém, ela pode ser ampliada e aprofundada quando organizada em uma sequência de atividades, como fazem os professores da Creche Parque dos Príncipes, em Jacareí, interior de São Paulo, com as turmas de 2 e 3 anos. Nesta proposta, as crianças investigam diferentes formas, elementos e receitas para fazer essa massinha. Sendo que a cada momento elas podem ter a oportunidade de experimentar diferentes coisas: a mudança de textura ao trocar fubá por farinha de milho em flocos, farinha de trigo, areia ou argila. E as transformações ocorridas ao colocar água (se for muita pode desandar, quando é pouco pode ficar seca e assim por diante) ou tinta. A dinâmica também é alternada. A professora apresenta os materiais em potes menores para uma exploração individual, em recipientes maiores, para investigação coletiva ou em pequenos grupos ou ainda com as duas opções simultaneamente para a criança escolher se quer brincar sozinha ou com o colega. “A sequência não é mais fechada, como antes. Hoje, com base na BNCC, ela é aberta. O docente pode acrescentar ou tirar algo, ou repensar tudo para atender a criança de acordo com as observações feitas”, explica Adriana Bertucci, supervisora da Educação Infantil-Creches da rede de Jacareí. “Começamos com o simplificado e vamos refletindo para aprimorar esse conhecimento”, diz a diretora Maria da Silva.
Observar e refletir
Essa lógica de alternar entre apresentar algo novo e repetir uma atividade, mas com variações nos objetos e materiais utilizados e desafios progressivos é mais significativa conforme o professor desenvolve um olhar sensível e observador para equilibrar o que é intencionalmente planejado– afinal, há direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento para garantir – com a percepção, e uso disso, sobre o que emerge da interação com as crianças. A observação é a principal ferramenta do docente e precisa ser exercitada como um trabalho cotidiano. Ele deve estar atento ao que ocorre com as crianças, registrar e analisar para que nada se perca, utilizando as observações para os planejamentos subsequentes.
No caso de bebês e crianças bem pequenas, em geral, isso representa atenção aos detalhes. “É necessário escutar, tendo a consciência de que a linguagem não se resume a oral e escrita. O bebê começa com linguagens mais corporais e expressivas até adquirir a fala. Então, escutar é prestar atenção como ele se movimenta, por que chora, quando ri, quando arregala os olhos etc”, diz Zilma de Oliveira, livre docente da Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto, e coordenadora do curso de pós-graduação em Educação Infantil do Instituto Vera Cruz. “E escutar a criança bem pequena é também ver o desenho dela, o jeito dela imitar algum amiguinho e outros sinais. Os detalhes são grandes e necessários”, completa. Se não fizer isso, não há como saber os caminhos que as crianças estão tomando. Aí o professor fica preso no seu planejamento e não considera a participação das crianças, que é um dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento. Uma chave importante para o planejamento é pensar o conceito de ambiente educativo. “Criança pequena tem de ser imersa num ambiente rico culturalmente. Não é só o espaço físico. É a configuração de pelo menos quatro elementos: tempo, espaço, materiais e interações”, diz Silvana. “Esse ambiente não pode garantir apenas uma experiência, com um tipo de material e um foco curricular. Ele deve ser múltiplo”, reflete Karina.
A Grão da Vida, que administra duas creches conveniadas com a prefeitura de São Paulo, integra a preocupação com esses quatro pontos ao propor uma modalidade para organizar a rotina chamada de Núcleos Coletivos para o Parque, no qual são preparados cantos temáticos na área externa. São cinco: artes, histórias, brincadeiras, corpo e materiais e intervenções – este último oferecido diariamente. Os demais são feitos em rodízio, de modo a garantir ao menos três por dia. É um momento de livre escolha, em que a criança pode decidir em qual atividade quer participar e tem a oportunidade de interagir com os colegas de sua turma ou de outras (a escola atende crianças de zero a 3 anos e 11 meses) tanto em pequenos grupos quanto individualmente.
A cada mês, as propostas para os núcleos são planejadas coletivamente entre gestores e docentes e consideram o uso equilibrado de materiais estruturados e de largo alcance em atividades que consideram os aspectos afetivo, motor e cognitivo. “Quando se oferecem em um mesmo espaço várias situações, você garante maior integração entre elas, colocando em prática o princípio da transitoriedade dos campos de experiência, que está na Base”, explica Karina. O tempo de duração vai depender da exploração de cada criança, afinal, cada uma tem suas particularidades. Para as menores, que almoçam mais cedo, pode ser 1 hora. As maiores chegam a ficar entre 1h30 e 2 horas. “O objetivo é garantir que a criança brinque, se relacione e crie com liberdade e por um longo período”, diz Vera Christina Figueiredo, responsável pelo projeto pedagógico. Alterações na rotina, como a da iniciativa paulista, são bem-vindas e podem ser feitas de maneira gradativa – mantendo os marcadores temporais escolhidos pela escola –, mesmo em instituições nas quais a rede ainda não concluiu o processo de alinhar o currículo à BNCC ou de reconstruir o projeto político-pedagógico (PPP). “Antes havia horário para tudo e o professor era cobrado a cumprir a rotina. Hoje estamos desconstruindo isso, mostrando que ela é flexível, pois temos de respeitar o tempo da criança”, diz Claudiane. Assim, orientamos o docente a manter a atividade se as crianças permanecem interessadas. “Não tenha a rotina escrita em pedra. Ela é um direcionador, mas pode, e deve, sofrer alterações provocadas pelas crianças, pelas oportunidades que elas trazem e que a gente precisa ser sensível para enxergar e acolher”, afirma Karina. Para manter a postura de respeito ao tempo de experiência da criança, tenha sempre atividades de transição ou cantos de passagem para atender aquelas que forem esgotando o interesse no que está sendo realizado. “Não deixe que elas tenham momentos de espera. Prepare opções que elas possam fazer sozinhas como livros para explorar sem a presença do adulto, vários blocos ou tipos de bonecos etc.”
Claudiane vem conduzindo discussões com a equipe docente para repensar o olhar para a criança, a organização do espaço e do tempo e as práticas pedagógicas e incentivando-os a testar as mudanças na prática. “O documento que a secretaria constrói é essencial, mas o mais importante é o dia a dia da escola. Então, vale pensar o que conseguimos fazer em paralelo. Porque, se formos esperar, várias crianças vão perder oportunidades”, diz Karina. Professores e gestores também não devem ter medo de errar, com o risco de continuar fazendo sempre mais do mesmo. “Registre as dúvidas e converse com seus colegas”, aconselha Zilma. “Quanto mais exercitamos a percepção para entender os interesses das crianças, mais a gente acerta”, conclui Karina Rizek.
Fonte: Rosi Rico – Nova Escola
Data: 02/08/2019