Se não tiver vacina contra COVID, nunca mais teremos escola no Brasil?
Uma análise das prioridades do país que reabre botequins, shoppings e faz campeonatos de futebol sem nem pensar na volta da Educação
O Brasil continuará sendo o país do futuro enquanto a educação não for uma prioridade. Os fatos da pandemia comprovam que definitivamente não é. Nós, brasileiros, gostamos de colocar a culpa do sucateamento da educação nos nossos políticos. Por mais que seja interessantíssimo para a classe política manter o povo na maior ignorância possível, a maior parcela de culpa é nossa: fosse determinante para o sucesso político o empenho na educação, a atitude dos nossos governantes seria muito diferente. E quem determina o sucesso político deles somos nós.
A forma do brasileiro enfrentar a pandemia de COVID-19 não é diferente da nossa forma de viver: driblando regras. Não precisar cumprir nenhum tipo de regra é símbolo de status na nossa cultura e funciona na nossa convivência em sociedade, já que os discordantes não têm voz suficiente para alterar essa dinâmica. Ocorre que vírus não se comove com debate e dinâmica social, também não precisa de voz. Somos excelentes para arrumar desculpas e justificativas para todos os tipos de escorregadas e deslizes e, de pulinho em pulinho, chegamos a uma situação completamente aberrante.
Quais são as prioridades do Brasil? Em plena pandemia, os bares estão lotados, os bailes funk seguem a todo vapor, as praias cheias de gente no feriado, os shoppings abertos, os restaurantes abertos, as campanhas eleitorais nas ruas. As escolas continuam fechadas até que se descubra uma vacina. Suponhamos que não se descubra, não vai mais ter escola no Brasil? Esses adultos que vão a todos os outros lugares não têm contato com crianças? Precisamos ser adultos pelo menos agora.
No início da pandemia, quando ainda vivíamos um susto e os cientistas não sabiam nada sobre o vírus, os mais prudentes se recolheram. Os adolescentes de mais de 40 anos continuaram, tal qual os adolescentes reais das famílias, a chiar por “liberdade”. Mas o fato é que até Gracyanne Barbosa cancelou a ida à academia, o que dá a medida da gravidade da situação. Seis meses depois, pessoas que fazem parte do grupo de risco, acusam academias de “gordofobia” porque as impedem de voltar a treinar. E as escolas continuam fechadas.
Fosse caso da minha imaginação, vocês teriam razão em dizer que é exagero. Trata-se de fato real. O Sesc Guarulhos está sendo acusado de “gordofobia” porque seguiu protocolos da OMS na reabertura da academia de ginástica. Depois de 5 meses, o Sesc reabriu algumas atividades, com muitos protocolos de segurança. Pessoas sabidamente de grupos de risco, como obesos e idosos, não podem fazer atividades presenciais e têm opções de atividades remotas. Duas usuárias reclamaram à imprensa que, por ter Índice de Massa Corporal acima de 30, foram impedidas de fazer atividades e isso seria “gordofobia”. Uma delas reclama que o problema é a informação ter sido dada na frente de outras pessoas, o que a constrangeu. Provavelmente aquelas pessoas jamais saberiam que ela estava acima do peso, não fosse a informação sobre o IMC. A imprensa noticia isso, como se fosse uma reclamação legítima, com as escolas fechadas.
Ao falar sobre reabertura de escolas, é invariável que a ditadura da superficialidade me bombardeie com a pergunta: “você mandaria o seu filho à escola?”. Meu pequeno burguês privilegiado de condomínio nunca perdeu um dia de aula porque temos condições de pagar por isso, por alimento, aulas extras, até aula de ginástica online e apoio psicológico. Eu gostaria de poder pagar para todas as crianças, inclusive para as que estão sem aula enquanto os adultos de casa vão ao bar, à praia, ao funk, ao shopping… Se, na Constituição, a infância é prioridade, na prática se atende quem grita mais alto.
Definitivamente crianças e mulheres não gritam mais alto no Brasil e estão perdendo décadas de avanços devido à fanfarronice, casuísmo e lacração no meio da pandemia. Se todos os serviços voltam a ser presenciais mas as escolas e creches não voltam a funcionar, onde vão ficar as crianças? A gente dá um pause e deixa em casa para dar play de novo quando volta do trabalho? Claro que não. A mãe acaba tendo de deixar o emprego. Segundo o IPEA, em pesquisa atualizada a pedido do G1 durante a pandemia, a participação de mulheres no mercado de trabalho já caiu aos níveis que tínhamos nos anos 90. Perdemos em meses conquistas de décadas.
Há os catastrofistas que entendem que falar em reabertura de escolas é mandar crianças e professores para a morte certa. Imagino que todas as crianças e professores do Brasil estão seguramente blindados de contato com as multidões que saracoteiam livremente nos bares, festas e bailes por aí. Ou, sei lá, vai ver esse pessoal todo descobriu a vacina e não contou para a gente. Enquanto os otimistas à toda prova fazem o debate patético sobre obrigatoriedade de uma vacina que nem existe, a realidade precisa de atenção: não sabemos quando e nem se teremos uma vacina. Eu tenho esperança, torço, penso positivo e oro, mas políticas públicas não são feitas com pensamentos positivos, são feitas de fatos. O fato é que temos já algum conhecimento sobre o vírus, transmissão, prevenção e não temos vacina.
Hoje mesmo, uma decisão de um único juiz, no Rio de Janeiro, exige que haja vacina ou comprovação de zero risco de contágio para determinar a volta às aulas. Seria cômico se não fosse trágico. Sejamos realistas: há inúmeras doenças mais antigas para as quais não temos vacinas e nem perspectivas de conseguir uma. Vamos admitir que um ano letivo não fará a diferença na vida das futuras gerações, damos 2020 por perdido. E 2021? E os próximos? O erro está em priorizar botequim no lugar de escola, em ceder a quem grita, de forma casuística, em vez de colocar a vida das famílias em primeiro lugar.
Em diversos outros países, a prioridade é o futuro da nação e o bem estar das famílias. Sim, há culturas que colocam esses valores à frente da esbórnia e do botequim. Não vou nem me concentrar nos asiáticos, que têm culturalmente um senso de coletividade e uma disciplina muito diferente da que nós vivenciamos. Adaptar métodos e princípios deles para a cultura latina não é tão simples. Hoje, a Reuters fez uma reportagem mostrando como está sendo feita a volta às aulas em vários países, como Bósnia, Irã, Espanha, França e Alemanha.
É inspirador ver pessoas que pensam nas crianças como prioridade, como o futuro do país. As escolas foram instituídas há séculos como meio para formar as gerações seguintes e promover laços entre diferentes grupos sociais e familiares, são parte importantíssima da formação do tecido social. No mundo todo, há pessoas fazendo todo tipo de tentativa para atender a infância sem colocar as crianças em risco, mesmo em países mais pobres que o nosso.
Embora o vídeo da Reuters esteja em inglês, é possível visualizar diferentes formas de lidar com a questão do contágio, de acordo com as diferentes culturas e condições sociais e financeiras. Há medidas de distanciamento e equipamentos especiais construídos em escolas europeias, que tiveram treinamento para professores e alunos. Já no Irã, por exemplo, onde não há tantos recursos à disposição, se está fazendo uma tentativa de aulas ao ar livre, com distanciamento e máscaras. Há tentativas também de dar pelo menos algumas aulas por semana, para não perder o vínculo com a escola.
O que nos separa desses países, basicamente, é o título de campeões mundiais da hipocrisia. Estamos fingindo que as crianças estão isoladas até agora só porque não vão a escola, sendo que a quase totalidade já não está isolada faz tempo. Crianças estão brincando nas ruas, indo às casas umas das outras, formando grupos de amigos em condomínios e tendo contato também com os adultos que se aventuram em toda a estrutura de divertimento que já foi reaberta. Admitimos que crianças tenham contato com o vírus desde que seja para satisfazer os prazeres dos adultos e que eles não precisem admitir publicamente que isso acontece, que são incapazes de proteger completamente as crianças.
A insegurança em mandar crianças para a escola vem da falta de seriedade e do excesso de lacração e mitagem do debate. Estamos no meio de uma pandemia, é preciso que as coisas funcionem, mas parece que no debate público brasileiro o importante é ter razão. Se nunca tivermos uma vacina, não teremos mais escola, é isso? Mas teremos botequim e baile funk, isso não se discute. É hora de parar o bate-boca, a fantasia de entender de epidemiologia e começar uma união nacional em nome da infância brasileira.
Já há muitas pessoas envolvidas de forma extremamente positiva nesse debate e nesses estudos, mas infelizmente são caladas pela estridência da cultura da superficialidade, disseminada pela imprensa e principalmente pelas redes sociais. Nossas crianças e o futuro do Brasil merecem mais que isso. Somos um país imenso e diverso, com capacidade de dar inúmeras soluções locais diferentes para as nossas crianças. É urgente começar. Sigamos os exemplos de quem já começou.
Madeleine Lacsko
Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
Por Gazeta do Povo