Em tempos de ensino remoto, estudantes assistem aos vídeos dos professores na velocidade 2x para encurtar aula
Educadores debatem se fenômeno do ensino pós-pandemia é apenas adaptação às circunstâncias atuais ou se isso representa perdas fundamentais para o aprendizado.
Não é só áudio do WhatsApp que está sendo tocado em velocidade 2x: no cenário pós-pandemia, alunos aceleram até as aulas on-line para ganhar tempo.
Estudantes universitários relataram ao G1 que, com essa possibilidade, conseguem transformar 3 horas de explicações do professor em apenas uma hora e meia de conteúdo. E depois aplicam o “excedente” tanto em atividades vinculadas ao estudo (trabalhos do estágio, por exemplo) quanto em missões nada acadêmicas (tarefas domésticas têm predileção).
“Deixo a aula aberta e vou cozinhando ou limpando a casa. Quando é uma parte menos importante, acelero mais. Se precisar, pauso para fazer alguma anotação”, conta Carolina Fonseca, aluna de design da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Estou trabalhando muito mais na pandemia e tenho pouco tempo livre. Até quando vejo filme, acabo deixando mais rápido. Acho que existe uma urgência de querer participar de tudo, de estar por dentro de tudo.”
Para a pesquisadora Andrea Jota, do laboratório de estudos de psicologia e tecnologia da PUC-SP, a escolha por aumentar a velocidade das aulas pode ter as seguintes razões:
1- Cansaço pelo aumento do tempo de tela:
Por causa da pandemia, há mais de um ano, o lazer e os estudos estão focados no mundo digital. “Lógico que, entre os dois, as obrigações vão ser menos estimulantes”, diz.
Isso faz com que o aluno, cansado de ficar tanto tempo no notebook ou no celular, opte por diminuir a permanência em frente às telas justamente quando precisa cumprir as atividades acadêmicas.
Gustavo Almeida, estudante de engenharia civil no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG), conta que a “rotina digital” traz, de fato, um estado de exaustão mental.
“Fico muito cansado, porque acabo passando das 7h às 21h no computador. Nas aulas, coloco velocidade 1,75x ou 2x. Consigo administrar bem assim, e o tempo cai basicamente pela metade”, diz.
2- Consequência da ‘atenção exclusiva’:
A pesquisadora Andrea Jota explica que, na aula presencial, a atenção do aluno nunca é exclusivamente dirigida ao professor. Ele pode virar para o lado e fazer um comentário com o colega, olhar pela janela e se distrair por alguns minutos, ficar reparando em qualquer elemento da sala, erguer a mão e fazer uma pergunta…
Mas, quando a aula é on-line, o campo de “distrações” fica muito reduzido.
“Na tela, com o vídeo aberto, você é quase obrigado a prestar atenção no que está sendo dito, mesmo que aquilo não te atraia. Há uma perda da autonomia de escolher no que focar. Do ponto de vista psicológico, isso cansa”, diz Jota.
3- Dificuldade na adaptação das aulas para o formato virtual:
“No começo, achávamos que seria tudo temporário. Se eu soubesse que demoraria tanto tempo para voltar para o presencial, teria feito um esforço maior”, afirma Kaizô Beltrão, professor da escola de administração da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“Coloquei internet mais rápida para resolver problemas de conexão. Mas o processo de adaptação vai levar um tempo.”
A dificuldade de encontrar um formato de aula que não seja a mera transposição do presencial para o digital é um desafio para os professores.
Por causa da pandemia, o processo de implementar o ensino remoto foi abrupto, e parte dos docentes ainda tenta encontrar uma forma de aproveitar as vantagens da tecnologia para atrair a atenção dos estudantes.
“Daria para usar planilhas eletrônicas na tela e compartilhá-las com os colegas, tirar dúvidas, dar dicas. Isso era impossível no presencial, e poderia aumentar a interação da turma. Mas vejo que os alunos continuam se falando só nos próprios grupos. Não estão mais participativos”, conta Beltrão.
Andrea Jota, da PUC-SP, explica que elaborar um curso à distância é um processo trabalhoso e construído em conjunto.
“A demanda foi da escola e das faculdades, que continuaram cobrando mensalidades e precisavam dar algo em troca. Não foi um processo de analisar a ferramenta, construir o material pedagógico… Em geral, foi só uma transferência para o virtual”, diz.
Uma das maiores vantagens do ensino remoto seria justamente a possibilidade de os alunos construírem suas “trilhas de conhecimento”.
“Tem gente que aprende melhor conversando com os outros, lendo, vendo vídeo ou escrevendo. A internet permite que cada um escolha como vai adquirir conhecimento. Mas, se você obriga que os jovens fiquem horas a fio assistindo a aulas em que não estão interessados, perde esse benefício”, afirma a pesquisadora.
Para ela, não faz sentido, por exemplo, manter o mesmo tempo de duração das aulas. “O professor deveria ser pago por empreitada, não por hora. Na internet, é possível que o conteúdo seja apresentado de forma mais objetiva. Não tem por que exigir que se cumpra a carga horária que valia no ensino presencial, antes da pandemia.”
4- A ilusão da ‘otimização do tempo’:
Dani Rodrigues, aluna de medicina na Unigranrio Caxias (RJ), conta que acelerar o áudio “facilita e agiliza” as aulas teóricas, ministradas à distância. “São muito longas e intensas. Assim, consigo reduzir o que tinha de 3 a 4 horas em algo mais curto, de 1h30. No começo, era confuso, mas é tudo questão de costume”, afirma.
“Agora, se vejo uma aula normal [ao vivo], dá até aflição de não estar acelerada também. Desacostumei.”
A psicóloga Rita Calegari destaca como a ideia de “aproveitar melhor o tempo” pode ser atraente. “Nós somos seduzidos pela ideia de otimização. É uma falsa sensação de que vamos conseguir fazer muitas coisas ao mesmo tempo – como mexer a panela e ouvir a aula de física”, explica. “Mas a questão é: acelerar para chegar aonde?”, reflete.
Quais as consequências das aulas aceleradas?
O aluno que, pelas razões listadas acima, opta por acelerar as aulas pode até ganhar mais tempo no dia. Mas também está sujeito às seguintes consequências:
Dificuldade de foco
“Se eu divido minha atenção entre a aula de matemática e o trabalho em uma planilha, atinjo a mesma área do cérebro para as duas tarefas. Isso traz perda de foco para ambas”, afirma Jota.
Perda das minúcias da comunicação
“Saindo do presencial, perdemos a parte não verbal da comunicação. Se acelero o áudio, pego ainda menos as ‘respiradas’, as entonações, os suspiros que me mostram se a pessoa está cansada ou desanimada. Nossa escuta vai ficando cada vez mais superficial”, diz a psicóloga Calegari.
Provável dificuldade de voltar a conviver socialmente
“A tela traz a falsa sensação de segurança. O aluno fica no conforto do seu quarto, com a impressão de que não pode ser atingido pelos outros. O retorno para o presencial deve trazer maior ansiedade pela retomada das relações face a face, sem o controle da internet”, explica Andrea Jota.
Necessidade de reaprender a ter paciência
“Corremos o risco de ter jovens que não saberão mais conversar. Imagine como vão poder falar com idosos mais lentos ou com pessoas com problema de dicção? Mas, claro, precisaremos esperar para ver as consequências daqui a 5 ou 10 anos”, diz Calegari.
O que fazer, então?
A pesquisadora Andrea Jota afirma que o ensino à distância seria, em tese, uma opção para os alunos. Eles escolheriam esse formato e teriam acesso a um material que foi, desde o início, formulado para a versão digital.
A pandemia, no entanto, quebrou esta lógica. Com a suspensão das atividades presenciais, foi impossível colocar a educação remota apenas como alternativa. De que modo, então, tornar as aulas virtuais mais atrativas?
• Da parte das universidades, o caminho não deve ser obrigar o aluno a comprovar presença em determinado horário, diz Jota.
“Esse esquema de o mesmo professor ensinar todos ao mesmo tempo, com hora marcada, não tem propósito. Fazer com que o estudante abra a câmera para comprovar que está presente faz você perder justamente a flexibilidade que as telas proporcionam”, afirma. “O ideal é permitir que o estudante organize seu dia e assista à aula quando achar melhor.”
• É preciso proporcionar momentos de interação e de troca entre alunos e professores, mesmo que eles não consigam estar conectados sempre ao mesmo tempo.
• Os jovens precisam aprender a ter momentos off-line. Jota diz que há uma “dificuldade de lidar com o ócio”. Por isso, é preciso tentar buscar atividades de relaxamento durante o dia, como exercícios físicos (mesmo que em casa) ou meditação.
• O conteúdo deve ser oferecido com diferentes recursos digitais – vídeos, apresentações, planilhas colaborativas… Uma das vantagens da internet é justamente oferecer mais de um meio de aprendizagem.
• As aulas podem ser mais curtas e objetivas, sem a obrigatoriedade de cumprir a carga horária pré-pandemia.
Por: G1