Protagonismo do estudante ganha força quando refletido no currículo
Com o Novo Ensino Médio e a possibilidade de escolha entre Itinerários Formativos e Projetos de Vida, estudantes podem se preparar para ser mais assertivos em suas escolhas e ganhar voz ativa
Quando se pensa em protagonismo juvenil, logo vem à cabeça a imagem dos grêmios estudantis. O primeiro deles no Brasil, fundado em 1902 na cidade de São Paulo, era voltado à promoção de esporte, cultura e lazer. Apenas em 1985 o direito à criação de entidades autônomas e representativas dos estudantes entrou na legislação brasileira. A Lei do Grêmio Livre garante que todas as escolas tenham, em seus currículos, espaços de participação democrática dos alunos na gestão.
O Ceará traz um bom exemplo de política pública recente que apoia agremiações. Desde o final de 2020, a Seduc (Secretaria de Educação) criou os GCAPEs, Grupos Cooperativos de Apoio à Escola. Fundamentados na metodologia de aprendizagem cooperativa, a ideia de lideranças estudantis busca ultrapassar os limites da representatividade do grêmio.
“Cada estudante tem o potencial de contribuir sendo líder de um grupo, aqui denominado célula, instalado na escola independentemente de possuir grêmio estudantil. Cada integrante é estimulado a pensar coletivamente e colocar em prática projetos extracurriculares e aprimorar habilidades artísticas, interpessoais e esportivas”, explica Gilgleane Silva do Carmo, coordenadora de protagonismo juvenil da Seduc-CE. “A relação entre grêmio e grupos cooperativos fortalece e estrutura ainda mais os processos de ensino e de aprendizagem que, no Novo Ensino Médio, vêm com uma proposta de inovação”, diz.
Para além da histórica representação gremista como símbolo de protagonismo, as diretrizes do Novo Ensino Médio, que entraram no currículo brasileiro neste ano, colocam o jovem no centro do aprendizado, por meio de escolhas próprias em suas trilhas de aprendizagem. Tanto os Projetos de Vida quanto os Itinerários Formativos, partes flexíveis do documento, permitem que os alunos aprofundem seus conhecimentos em uma ou mais áreas de seu interesse.
“Basicamente, todos os (novos) currículos estaduais de ensino médio têm, de fato, o protagonismo no cerne de sua estruturação”, avalia Anna Penido, diretora do Centro Lemann de Liderança para Equidade na Educação. “Li alguns deles. Desenvolvimento integral e o aluno no centro do processo de ensino-aprendizagem estão profundamente contemplados”, afirma a especialista em educação, também integrante do conselho do Porvir.
Em linhas gerais, o protagonismo juvenil encontra espaço quando o estudante é sujeito do seu processo de aprendizagem, estimulado no processo educativo a buscar o seu propósito e entender por que está ali, explica Anna. E os novos currículos propõem uma série de possibilidades para a atuação ativa dos estudantes, de maneira qualificada.
Quando há a possibilidade de os estudantes escolherem Itinerários Formativos e trilhas de aprofundamento, isso já é um um convite ao protagonismo juvenil, principalmente o componente
Projetos de Vida
“Quando há a possibilidade de os estudantes escolherem Itinerários Formativos e trilhas de aprofundamento, isso já é um um convite ao protagonismo juvenil, principalmente o componente Projetos de Vida. É quando esse aluno vai se preparar para ser mais assertivo nas suas tomadas de decisão, nas suas escolhas, com possibilidade de mergulhar mais em atividades de autoconhecimento e criticidade.”
Segundo Anna, para que esse protagonismo saia dos currículos e se manifeste de fato, é necessário focar na formação de professores e gestores no desenvolvimento de novas competências e relações entre educadores e estudantes. “É preciso compreensão das famílias para que também estimulem o protagonismo dos estudantes não só na escola, mas também em casa. E a escola deve lançar mão de abordagens pedagógicas que sejam realmente favoráveis, provocadoras, estimuladoras.”
Leitura de mundo
Outro ponto de atenção sobre protagonismo juvenil na educação, de acordo com a coordenadora de Inovação em Educação com Tecnologia do Instituto Unibanco, Jane Reolo da Silva, é compreender que crianças, adolescentes e jovens estão em um momento de desenvolvimento que demanda o esforço coletivo e não o individual. “Ser protagonista não é se tornar um destaque entre todos. O protagonismo é um processo de fazer parte de um coletivo que analisa, compreende e propõe soluções para resolução de problemas no contexto vivenciados por todos.”
Para Jane, ser protagonista é fazer parte deste coletivo, contribuindo com as habilidades e competências que lhe são peculiares, com intencionalidade pedagógica para desenvolver outras. “Não podemos cair na armadilha de confundir protagonismo com meritocracia. O protagonismo na educação deve ser um processo coletivo e não individual”, acredita.
Anna Penido destaca que tanto a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) quanto a reforma do ensino médio trazem esse protagonismo como princípio a ser observado na construção dos currículos, para que o aluno participe do que acontece na sua trajetória escolar. “O desafio é realmente colocar isso em prática e fazer aquilo que está descrito, muitas vezes de uma maneira bem interessante”, afirma Anna.
Para a diretora do Centro Lemann, a comunidade escolar precisa estar envolvida nesse processo. Ela reforça: é no chão da escola que o professor deve estar mais aberto e disposto a um relacionamento mais horizontal os estudantes, bem como as escolas com os gestores das secretarias, a fim de que todos construam mecanismos de diálogo e de tomada de decisão conjunta, de engajamento efetivo desses estudantes nas instâncias de participação, tanto no nível da rede quanto no nível escolar.
Por mais que o currículo prescrito esteja detalhado, não necessariamente se transmuta no currículo vivido
Jane concorda com Anna e ressalta, também, as diferenças entre o currículo prescrito e o currículo vivido. “Por mais que o currículo prescrito esteja detalhado, não necessariamente se transmuta no currículo vivido. A implementação de um currículo reflete paradigmas e visão de educação”, diz, relembrando que a construção do currículo do Novo Ensino Médio contou com a participação dos educadores e educadoras em consultas públicas e fóruns para que sua escrita pudesse explicitar pontos relevantes como o protagonismo.
“Em um paradigma colaborativo e integrador, o processo de ensino e aprendizagem irá privilegiar o equilíbrio de momentos de fala, escuta, reflexão e produção de forma equânime. A participação tem um objetivo de resolução de problemas de forma coletiva e colaborativa, e não em uma perspectiva individual e competitiva”, aponta Jane.
Voz ativa
Em Minas Gerais, a construção do currículo do Novo Ensino Médio incluiu uma seção especial para tratar da visão das juventudes. “No documento, consta um capítulo sobre o jovem entendido como sujeito sociocultural e a relação dessa juventude com a escola. Soma-se a ele a parte flexível do currículo representada pelos Itinerários Formativos e o Projeto de Vida”, detalha Geniana Guimarães Faria, secretária adjunta de educação de Minas Gerais.
“Em nosso entendimento, essa parte poderá proporcionar, a partir de um estreito diálogo com os saberes trazidos pelas áreas do conhecimento que tradicionalmente compõem o currículo, uma articulação com a construção de conhecimento, e reflexão sobre as diversas realidades vivenciadas pelos estudantes”, acredita.
Geniana conta que a construção do currículo mineiro levou em consideração a perspectiva legal de normativas que garantem ao jovem sua inserção e direitos na sociedade. Ela ressalta o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), Lei 8.069, de 1990, e o Estatuto da Juventude, de 2013. “São instrumentos fundamentais para a proteção integral dos jovens, permitindo que as juventudes brasileiras passassem a ser vistas como sujeitos de direitos dotados de autonomia e como interlocutores ativos na formulação, execução e avaliação das políticas a eles destinadas”, reforça a secretária adjunta.
Interdisciplinaridade no currículo e na prática
A formação dos professores em “caixinhas de licenciaturas”, como descreve Geniana, sempre dificultou a materialidade do trabalho interdisciplinar e um documento orientador como a BNCC não provocaria essa mudança. “O Novo Ensino Médio é uma mudança de paradigma. Já a organização curricular, respeitando a geograficidade do território, ouvindo as contribuições dos sujeitos diretamente envolvidos e ‘afetados’ por esta mudança, produz mais engajamento para elaboração de projetos, ações por área de conhecimento e até um maior uso da cidade, nos espaços fora do ambiente escolar, criando possibilidades de uma cidade educadoras”, diz Geniana. “Com a interdisciplinaridade que o Novo Ensino Médio provoca, isso deixa de ser algo pontual e passa a compor uma mentalidade de redes”, complementa Gilgleane Lima, da Seduc-CE.
“O sentido interdisciplinar tem que, de largada, estar presente no processo de ensino para se constituir no de aprendizagem”, reforça Jane Reolo da Silva, do Instituto Unibanco. “Quando falamos de ensino e aprendizagem, precisamos considerar a intencionalidade didática pedagógica para este trabalho interdisciplinar. Mais do que a formação dos alunos, estamos falando da formação em serviço dos educadores e educadoras”, conclui.
Por: Porvir