Alfabetização: como conduzir o processo de aprender a escrever
Especialistas dão orientações e dicas práticas para apoiar esse percurso, trabalhando temas de interesse das crianças e partindo do que elas já sabem
Aprender a escrever é objeto de fascínio das crianças, que se orgulham de empunhar um lápis e participar do mundo letrado. É isso que tanto motiva os estudantes na complexa empreitada da alfabetização e produção da escrita.
Quando o professor, atento, segue esse interesse natural dos alunos, as aprendizagens se tornam mais significativas e, portanto, duradouras. “É menos sobre treino e memorização e mais sobre dar sentido à alfabetização”, sintetiza Regina Clara, consultora do Cenpec e coordenadora pedagógica.
Ela explica que, desde pequenas, as crianças produzem textos — narrativas próprias que ainda não são escritas. “Elas manifestam o desejo de brincar ou de comer, antes de começar a escrever de próprio punho, e isso também é texto. Depois, seguem aprendendo a produzir novos textos em função de diferentes situações de comunicação até o fim da vida.”
Durante esse processo de aquisição da linguagem, encaram o desafio da coordenação motora e de compreender o que escrever, para quem, como e com qual objetivo. Ainda, o de relacionar sons e letras, os conhecimentos prévios e os novos.
“A Magda Soares [educadora referência em alfabetização] vai dizer que a alfabetização tem muitas facetas”, cita Daniela Mara Lima Oliveira, docente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Uma delas, é essa janela que se abre para as crianças. Vivemos em um mundo grafocêntrico, isto é, com a escrita em todo lugar. Quando elas podem acessar esse mundo, ficam doidas! Querem escrever e ler o tempo todo.”
Alfabetização e exercício da cidadania
Escrever e ler, inclusive, são atividades que enriquecem uma à outra simultaneamente, e ajudam os estudantes a consolidar as habilidades necessárias para a alfabetização.
Também contribui para esse processo trabalhar os temas de interesse das crianças, do território que as circunda, e personalizar o ensino, adotando as melhores estratégias para cada agrupamento de estudantes. Dada a diversidade que é característica desse processo, Regina defende que é preciso “ir além da disputa entre métodos”.
“Precisamos encarar nossas crianças como sujeitos pensantes, que observam e interpretam o mundo à sua volta e têm hipóteses de como escrever”, diz Regina. “Depois, é partir de quem eles são e do que já sabem para criar os melhores contextos para que a alfabetização ocorra.”
Uma alfabetização adequada e com sentido facilita o acesso ao conhecimento humano acumulado e constitui um exercício de cidadania. “Na alfabetização, temos pessoas se fortalecendo nesse lugar de cidadão de direitos. De poder participar das situações comunicativas, de [ter] presença no mundo, de produzir, manifestar, expressar-se”, pontua a consultora do Cenpec.
Alfabetização e produção da escrita
Em 2019, circulou pela internet o desafio da boneca Momo – em que apropriaram-se da criação do artista japonês Keisuke Aiso para disseminar notícias falsas e incentivar as crianças a atentarem contra a própria vida. O tema reverberou entre os alunos de 1.º ano da professora Luciana Domingues Ramos, que leciona na EMEF Professor João Carlos von Hohendorff, em São Leopoldo (RS).
“Discutimos juntos os perigos da internet, as fake news. Depois, criei com eles o #Desafio_Anti_Momo, em que eles fizeram sua própria boneca Momo de massinha, tiraram foto e, no computador, escreveram pequenos textos para estimular as pessoas a fazerem o bem”, conta Luciana. O resultado foi publicado nas redes sociais da escola.
O tema também foi desdobrado em memes, podcasts e um filme de curta-metragem. “Eles gostam de escrever no caderno, mas quando esse texto chega a outras pessoas, mobiliza muito”, salienta a educadora.
Ela também considera positivo diversificar os suportes e formatos de narrativa. “Nessa fase, nem todos estão escrevendo, mas querem mostrar o que estão aprendendo. Então, atividades que permitem que eles se expressem de várias formas são muito motivadoras.”
Escrever para aprender a escrever
Segundo Regina, também contribui para a alfabetização alternar momentos de escrita coletiva, em duplas e individualmente. “Pedir para uma criança ditar um texto para um colega escrever é muito rico.”
Atividades de transcrição de textos que as crianças sabem de cor também promovem o progresso da escrita. Isso porque elas aprendem a manter fidelidade ao registro, controlar o que já foi escrito e o que ainda falta escrever, observar aspectos relacionados à segmentação do texto e analisar questões relativas à compreensão do sistema alfabético e das convenções do sistema ortográfico.
Decalque e reconto de textos conhecidos são outras práticas indicadas. O decalque possibilita concentrar-se no conteúdo temático, uma vez que a atividade consiste em retirar algumas palavras centrais de um texto já conhecido e pedir para que as crianças as substituam, dando outro sentido a canções e poemas, por exemplo. Já o reconto de textos conhecidos prioriza aspectos estilísticos, que permite que as crianças se apropriem da linguagem que se usa para escrever.
Regina recomenda ainda que o professor mantenha um mapa atualizado da classe, com a hipótese de escrita que cada criança tem, seu ritmo, avanços e o volume de escrita que ela dá conta. Assim, ele pode calibrar o desafio que vai propor para cada estudante e as formas de agrupar e reagrupar a turma para a aprendizagem colaborativa.
Esse olhar atento a cada um faz toda a diferença. Geisla Lima, professora alfabetizadora na EMEB Professora Marina de Almeida Rinaldi Carvalho, em Jundiaí (SP), lembra o caso de um aluno que se recusava a escrever. Só foi possível convencê-lo do contrário ao propor que ele escrevesse sobre os bichinhos do jardim, sua paixão, para compartilhar esses conhecimentos com outras pessoas. “Ouvir as crianças e saber do que elas gostam facilita demais esse trabalho”, destaca.
O lugar do erro na alfabetização
“Professora, tá certo?” é uma pergunta que costuma ecoar nas salas de aula dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Empenhados em abrir mão de sua escrita tão própria para adotar o padrão da Língua Portuguesa, é comum que os estudantes entrem em um conflito interno.
“É um momento delicado, que demanda lidar com o erro, e muitas crianças não recebem bem essa questão. Pode haver muita cobrança, impactos para a autoestima e o desejo de não querer mais arriscar”, observa Luciana. “O mais importante é dar liberdade para eles se aventurarem e lembrá-los de que uma criança que está aprendendo a escrever é uma criança corajosa.”
Isso demanda que o professor incentive os estudantes a qualificarem suas perguntas, para entender quais são as dúvidas, ao invés de apenas dizer a eles qual seria a forma correta de escrita. “É interessante pedir para eles explicarem suas hipóteses e, então, dialogar a partir disso”, sugere Daniela.
Quando as crianças já construíram a base alfabética, elas devem ser estimuladas a refletir sobre as regularidades contextuais e morfológicas, e aprender a identificar quais são os contextos “perigosos”, porque mais de uma letra compete para representar um determinado fonema. Para enfrentar esses perigos, é importante incentivar o uso do dicionário.
Disponibilizar dicionários e deixar listas de palavras nas paredes da sala, como o nome de cada aluno ou os seus animais favoritos, também desenvolve a autonomia dos estudantes para escrever novas palavras a partir dessas já conhecidas.
Para ir além do certo e errado, a professora Geisla aposta no trabalho com as duplas produtivas. “Eles pensam juntos e têm discussões, enquanto eu aponto maneiras de refletir sobre o que eles estão fazendo.”
Regina indica, ainda, fazer escolhas do que revisar e aprimorar nos textos, ao invés de tentar corrigir todos os aspectos de uma só vez. “Vale deixar para fazer isso em um segundo momento, até em outro dia após a escrita do texto, porque isso faz com que as crianças fiquem menos apreensivas com a convenção.”
Propostas para promover a escrita
Confira algumas sugestões de atividades para estimular a produção de texto das crianças
Proponha a elaboração de listas e bilhetes
O caráter comunicativo real é especialmente atraente para as crianças. Geisla pede para seus estudantes escrevê-los quando precisam listar materiais, solicitar giz na secretaria ou compartilhar com a turma o que vai ter de merenda no dia, por exemplo. “Mas também já escrevemos bilhetes para avisar a mãe dos Três Porquinhos que o lobo está na floresta”, brinca a educadora.
Incentive a produção de cartas
Antes de receber uma turma do 1.º ano, a professora Luciana escreve uma carta para se apresentar a cada estudante. No decorrer do ano, são as próprias crianças que começam a produzi-las. “Quando recebem uma carta, ficam com vontade de respondê-la, de mandar outras para pessoas queridas. É a função social da escrita cativando as crianças”, ressalta.
Incentive a produção coletiva de recontos
Proponha o reconto oral de um conto de que as crianças gostem muito e grave a performance. Transcreva o texto e, na aula seguinte, antes de apresentar a transcrição, ouça a gravação com a turma. Comente que contar uma história oralmente é diferente de escrevê-la. Proponha, então, que as crianças revisem coletivamente o texto para que ele fique parecido com os contos dos livros. Retome a leitura do que já foi revisado, sempre que necessário, para que avaliem se o resultado está ficando interessante.
Estimule a produção de dicas literárias
Em geral, quando lemos algo de que gostamos, vamos logo indicando o livro para os amigos, não é? Aproveite esse comportamento leitor, para estimular as crianças a escreverem pequenas recomendações literárias aos colegas de outras turmas. Essa troca pode contribuir para a construção de uma comunidade de leitores na escola.
Por: Nova Escola