Os desafios da permanência estudantil

Publicado por Sinepe/PR em

As políticas públicas voltadas à concessão de auxílio no ensino superior é agravada por dificuldades financeiras, emocionais e sociais, o que resulta em alto índice de evasão em universidades públicas e particulares

Para a maioria dos estudantes, conquistar a aprovação no vestibular é uma das etapas mais difíceis antes do início da vida acadêmica. No entanto, para os mais carentes, a permanência na universidade é um processo tão ou mais desafiador do que a conquista da tão almejada vaga e o acesso à universidade. Para enfrentar a evasão no ensino superior, o Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes) foi instituído em 2010, por meio do Decreto n.º 7.234.

De acordo com dados do mais recente Censo da Educação Superior do Ministério da Educação (MEC) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2021 a taxa de evasão nas universidades públicas ficou em 9,4%, o que representa 165 mil graduandos. Nas instituições particulares, o índice foi de 38,8%, o que significa que 2,9 milhões de estudantes abandonaram a universidade. Estre os principais motivos para a evasão destaca-se a dificuldade financeira e a ausência de políticas públicas consistentes e continuadas.

Desafios sociais
Primeiro da família a ingressar no ensino superior em uma universidade pública, o estudante indígena Fêtxawewe Tapuya, 24 anos, das etnias Fulni-ô e Guajajara, vivencia e acompanha de perto as dificuldades enfrentadas diariamente no processo de permanência estudantil. Fêtxawewe cursa ciências sociais, com habilitação em licenciatura em sociologia na Universidade de Brasília (UnB), é presidente da Associação dos Acadêmicos Indígenas da UnB (AAIUnB), pesquisador, ambientalista e líder indígena jovem do Santuário dos Pajés, terra indígena localizada numa área de expansão imobiliária no setor noroeste, em Brasília.

Ele conta que já no ensino médio seu sonho era ingressar em uma universidade. Em 2017, começou a estudar direito em uma instituição particular, como bolsista. Em 2020, depois de três tentativas, conseguiu ser aprovado em ciências sociais pelo vestibular indígena da UnB e ingressou na principal universidade pública do DF, abandonando a graduação em direito. Como indígena, o estudante passou a experimentar não só desafios financeiros, como também de ordem social. Ele relata que chegou a sofrer preconceito e que ainda hoje lida com pensamentos estereotipados a respeito de seu povo.

“Foi um caminho difícil, tive muita dificuldade com o português por não ter domínio completo do idioma”, lembra Fêtxawewe. “A UnB nos auxiliou com o acesso à internet durante a pandemia, por meio de um chip disponibilizado aos estudantes, mas no início foi muito difícil. Precisei voltar para a minha aldeia, no Maranhão, para participar de um ritual. Acompanhando as aulas por lá, cheguei a escutar falas racistas de um professor porque eu não podia ligar a câmera. Percebia isso não só do professor, como de servidores, de colegas de turma. Ainda existe um racismo estrutural e institucional muito presente”, explica.

Atualmente, Fêtxawewe recebe o auxílio socioeconômico destinado a estudantes de baixa renda, além de trabalhar como estagiário. Apesar de ter tido acesso ao benefício, ele critica a burocracia que dificulta o processo, especialmente para os indígenas. “Cheguei a pensar em desistir do curso porque me sentia desamparado. O início é muito desafiador”, revela. Ele reconhece que a UnB tem avançado, mas acredita que muito ainda precisa ser feito. “Precisam nos entender não como indígenas que passaram no vestibular, mas como estudantes. Tivemos boas conversas com a reitora, mas as coisas não dependem só dela”, afirma.

Com previsão para se formar em 2024, Fêtxawewe acredita que concluir o curso é uma vitória não só para ele, mas para todo o seu povo. “Estar no ensino superior significa muito para mim, para minha família, meu povo, meus ancestrais. Quero poder me formar e dar esse retorno para a comunidade”, diz.

O esforço do cearense para cursar medicina
Apesar de ter se preparado ao longo do ano para cursar medicina, Adriano Justino de Lima, 17 anos, conta que recebeu a notícia da aprovação com surpresa. “Fiquei muito feliz porque era algo, até então, fora do comum, mas também fiquei surpreso porque, mesmo tendo estudando e me preparado, não estava confiante”, confessa. Natural de Cariri (CE), Adriano vive na zona rural com os pais agricultores e dois dos oito irmãos, em situação de extrema pobreza, em uma casa de taipa. O estudante foi aprovado em 2.º lugar em medicina, na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu).

O caminho percorrido por Adriano não foi nada fácil. Para se preparar para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), no 1.º ano do ensino médio, o jovem precisava se deslocar por cerca de três quilômetros até a casa dos vizinhos, para, só então, conseguir utilizar a internet e baixar os conteúdos que utilizaria ao longo da semana, já que não tinha celular e internet em casa. O jovem estudava em uma escola técnica em período integral. “Levantava 4 da madrugada, pegava dois ônibus e ficava até 17 horas na escola. Depois que chegava em casa, por volta das 7 da noite, ficava até 1 hora da madrugada estudando”, conta.

Nos anos seguintes, já com internet, Adriano estudava para o Enem por conta própria, por meio de videoaulas e resolvendo questões de provas anteriores. “Resolvia muitas questões de provas anteriores e fazia uma redação a cada 15 dias. Depois, pedia para os professores corrigirem e ia revisando os meus erros”, lembra.

Desafio financeiro

Depois de aprovado para a UFCG, Adriano quase perdeu a vaga por enfrentar dificuldades para arcar com custos da viagem até a universidade. Por isso, amigos e familiares abriram uma vaquinha para ajudá-lo, arrecadando mais de R$ 130 mil. “Depois que ingressamos no ensino superior, surge um aglomerado de dificuldades. É a moradia, a alimentação, o transporte, as apostilas. Ainda tem a questão emocional, porque é um curso denso. Com a ajuda da vaquinha, conseguirei concluir o curso”, argumenta.

Com o dinheiro da vaquinha, ele pretende alugar uma kitnet, enquanto não consegue ser contemplado pelo programa de moradia da universidade. As aulas começam em agosto. “Estou muito ansioso e contando os dias para o início das aulas. Enquanto não começa, já estou estudando o conteúdo da grade”, diz. “Quero trabalhar, futuramente, no Sistema Único de Saúde e levar atendimento mais humanizado aos pacientes”, sonha.

Distância
Aprovada em 1.º lugar em medicina na Universidade de São Paulo (USP), a estudante Maria Clara Santana Lira, 17, natural da Paraíba, optou por desistir da vaga para estudar mais perto de casa, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). A dificuldade financeira é apontada por ela como um dos principais motivos para a controversa decisão. “Além da dificuldade, tem também a distância da minha família, já que eu iria sozinha, e o pouco tempo para me planejar e me mudar”, afirma.

Aluna da rede pública de educação, a paraibana precisou estudar por conta própria e manter uma rotina intensa para conseguir a tão sonhada aprovação. “Cheguei a estudar em torno de 9 horas por dia durante o período da pandemia e precisei abdicar de muita coisa para que esse resultado fosse possível”, pondera.

Mesmo na UFPB, a jovem pretende participar do programa de assistência estudantil. Isso porque a universidade fica localizada há aproximadamente 500 quilômetros de onde a estudante reside atualmente, em Cajazeiras. Ela conta que irá morar na casa dos tios, perto da UFPB. “A assistência é uma medida importante para que os estudantes consigam concluir os estudos”, diz.

Primeira cadeirante a cursar medicina na UnB
Para a estudante autista, com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e cadeirante por consequências decorrentes da Síndrome de Ehlers Danlos, Miriã Sabrina Silva Barbosa, 26 anos, os desafios sociais fazem parte da rotina e impactam diretamente em sua permanência estudantil. Primeira estudante cadeirante a cursar medicina na UnB, ela precisa enfrentar, cotidianamente, a falta de acessibilidade — tanto arquitetônica quanto atitudinal —, o capacitismo e a resistência de alguns professores em adaptar e tornar acessíveis atividades e conteúdos.

“São diversos os espaços que não consigo acessar com a cadeira de rodas. Elevadores estreitos ou quebrados, rampas extremamente íngremes, calçadas quebradas, ausentes ou inviáveis. Não conseguir acessar a biblioteca, um espaço importantíssimo, por falta de acessibilidade, dificulta muito o dia a dia”, lamenta Ehlers.

Além das dificuldades nos estudos, a doença rara da estudante impõe limitações que a impedem de trabalhar. No momento, ela ainda não recebe auxílio estudantil e conta com apoio do pai para se manter financeiramente. “Por ser uma questão nova, a Diretoria de Acessibilidade e Inclusão da UnB tem trabalhado em uma melhoria da acessibilidade e luta pela garantia de acesso às aulas e atividades do curso”, afirma.

Ehlers considera inaceitável a ideia de que as universidades são espaços elitistas. “O mito de que universidades públicas são um espaço elitizado precisa cair, temos parte expressiva de alunos de escolas públicas e de baixa renda, e isso é excelente. Na UnB, um pouco menos que em outras universidades públicas, mas acredito que caminhamos para uma mudança ainda maior”, diz.

Ela argumenta, ainda, que a assistência estudantil é parte importante para assegurar aos estudantes a produção científica e a construção de suas jornadas profissionais sem se preocupar em trabalhar ou com o risco de abandonar a universidade. “É o básico que os estudantes precisam”, declara.

Por: Correio Braziliense