71% das cidades não cumprem lei do ensino e cultura afro-brasileira
Pesquisa realizada por Instituto Alana e Geledés – Instituto da Mulher Negra revela que apenas 29% dos municípios brasileiros realizam ações consistentes para implementação da Lei 10.639 nas escolas brasileiras
Uma educação de qualidade deve ser comprometida com a perspectiva antirracista, garantida desde a educação infantil e mantida durante toda a vida escolar. No entanto, 71% das secretarias municipais de educação realizam pouca ou nenhuma ação para a efetividade da Lei 10.639, que há vinte anos tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em todas as escolas do Brasil.
É o que demonstrou a pesquisa ”Lei 10.639: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira”, realizada pelo Geledés Instituto da Mulher Negra e pelo Instituto Alana. O levantamento conseguiu abrangência nacional com o apoio da Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) e da Uncme (União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação).
Assim, 1.187 Secretarias Municipais de Educação (21% dos municípios brasileiros) foram ouvidas no estudo, que verificou, ao longo de 2022, como foram construídas condições para combater o racismo estrutural, os passos percorridos e as lacunas existentes na implementação da legislação. Os resultados indicam que menos de 30% das secretarias municipais realizam ações consistentes e perenes para garantir o cumprimento da Lei 10.639.
Em evento de lançamento da pesquisa, realizado em Brasília (DF) na última terça-feira (18), a socióloga e coordenadora de educação e pesquisa do Geledés, Suelaine Carneiro, destaca que essa fotografia do momento em que se encontram os municípios em relação à legislação é fundamental para entender como o racismo continua atuando pela permanência das desigualdades raciais em nossa sociedade, especialmente na educação.
“Os resultados da pesquisa demonstram que ainda vigoram resistências em compreender a história e cultura afro-brasileira e africana como um componente pedagógico para o pleno desenvolvimento das e dos estudantes, para o aperfeiçoamento e valorização das e dos docentes, para garantia do direito à dignidade de toda a comunidade escolar”, destacou.
Municípios em foco
Os mais de cinco mil municípios brasileiros respondem pela escolarização de 49,6% de crianças e adolescentes, segundo dados do Censo Escolar da Educação Básica 2022. A decisão de lançar luz sobre como eles estão comprometidos com a Educação para as Relações Étnico-Raciais foi destaque na fala de Nilma Lino Gomes, ex-Ministra da Igualdade Racial, Mulheres e Direitos Humanos (2015-2016) e professora titular da Faculdade de Educação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
“É na ponta que a política pública acontece. Muitas vezes nós esquecemos da força que os municípios têm como motor do desenvolvimento do país. Um olhar nacional para a dimensão municipal é algo que merece destaque, assim como o desafio e a coragem de fazer uma pesquisa com essa abrangência num momento em que nossa democracia estava em suspensão”, disse Nilma durante o evento de lançamento.
A pesquisa foi realizada por adesão voluntária a partir de uma convocação nacional. A amostra de 21% de municípios participantes é representativa em relação à abrangência, com maioria dos respondentes (63%) classificados como municípios de pequeno porte, com até 20 mil habitantes. Já em termos regionais, a adesão foi maior nas regiões Nordeste (41%), Sudeste (20%) e Sul (18%).
Em entrevista ao Porvir, a analista de políticas públicas do Instituto Alana, Beatriz Benedito, explicou que a adesão é fundamental para que organizações da sociedade civil e movimentos sociais comprometidos com a pauta antirracista abram diálogo com as redes. “É importante ressaltar também que nossa pesquisa olha para a gestão pública da educação nas cidades. Portanto, não diz respeito às práticas individuais dos professores que estão na sala de aula comprometidos e engajados com a educação antirracista”, disse.
Entraves para a implementação da Lei 10.639
O levantamento mostrou que mais da metade das secretarias municipais respondentes (53%) realizam ações para implementação da Lei 10.639 de forma menos estruturada e esporádica, geralmente atreladas a projetos isolados ou em datas comemorativas, como o mês da Consciência Negra, celebrado em Novembro. Mas há também o grupo que admite não realizar nenhum tipo de ação para o cumprimento da legislação, chegando a 18% dos respondentes.
Entre os entraves citados pelos dirigentes estão a dificuldade dos profissionais em transpor o ensino nos currículos e projetos escolares, a ausência de informação e orientação sobre a temática e a falta de planejamento permanente e constante em torno da agenda antirracista. Destacam também a falta de cooperação técnica e financeira por parte do Governo Federal e dos governos estaduais.
“Só 8% das secretarias que participaram do levantamento tem algum tipo de dotação orçamentária para viabilizar essa política pública e apenas 5% dizem ter uma área específica para cuidar da educação para relações étnico-raciais. Vale dizer que as condições de trabalho dessa equipe reduzida nem sempre viabilizam uma atuação que seja de fato sentida no chão da escola”, avalia Beatriz.
Para Tânia Portella, sócia e consultora em educação do Geledés e uma das responsáveis pelo levantamento, não cabe a justificativa da falta de apoio. “Estamos lidando com dirigentes de educação. É a secretaria que define para onde vai o recurso. É preciso rever o olhar sobre como as coisas estão sendo colocadas em prática. Trabalhar só com a pedagogia do evento, usando recursos de forma difusa ou esporádica, não vai possibilitar que a educação antirracista seja transversalizada no currículo”, avalia.
Nessa mesma direção, Nilma Limo Gomes reforça que a tríade encontrada na pesquisa (orçamento, equipe técnica e regulamentação municipal) é observada em qualquer pesquisa que se faça em relação à implementação da Lei 10.639. “O racismo é o ápice que faz com que as coisas não aconteçam como deveriam nestes últimos vinte anos. As formas de expressão desse racismo estão, muitas vezes, na dimensão das consciências e dos inconscientes dos dirigentes, que não param para pensar que se apoiar no discurso de falta de interesse e apoio é colaborar com o racismo”, destaca.
Compromisso com educação antirracista é decisivo
Ainda que seja um número distante do ideal, o levantamento revela que três em cada dez redes municipais adotam práticas para a implementação da legislação. Em comum, essas secretarias têm estrutura administrativa, equipe técnica para observar a execução da lei no município, recursos financeiros, regulamentação local (portarias e decretos) e estratégias recorrentes para atender às Diretrizes Curriculares Nacionais para as Relações Étnico-Raciais.
Embora as pesquisadoras identifiquem que ainda existem problemas para que haja um planejamento mais efetivo, destacam que esse municípios precisam ser reconhecidos, valorizados e potencializados. “Ao implementarem a história e cultura afro-brasileira e africana confrontam um projeto de educação para hierarquização entre pessoas e assumem o compromisso com ações que enfrentam a violência racial no espaço escolar”, enfatiza Suelaine Carneiro. “Que esses municípios inspirem outras localidades a se integrarem ao compromisso com uma educação para a igualdade e equidade de raça e gênero”, completa.
Como uma segunda etapa da pesquisa, Instituto Alana e o Geledés Instituto da Mulher Negra pretendem mapear as principais práticas e estratégias adotadas por esses municípios.
Novas perspectivas
As palestrantes lembraram que a agenda racial foi uma das que sofreu desmobilização durante os últimos quatro anos de desmonte do Ministério da Educação (MEC) e com a extinção da SECADI (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão), recriada este ano.
Representando o governo, Lucimar Dias, diretora de Políticas de Educação Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola da SECADI, também integrou o debate de lançamento da pesquisa e pontuou o desafio de construir uma política antirracista em larga escala em um contexto de reconstrução.
“A Política Nacional de Educação não pode tratar educação antirracista como algo paralelo”, Lucimar Dias, diretora de Políticas de Educação Étnico-Raciais e Educação Quilombola da SECADI
“Nós estamos comprometidos em alterar essa realidade e já estamos fazendo ações que terão impacto, por exemplo, a ampliação do valor da bolsa de estudantes quilombolas nas universidades”, disse, destacando o diálogo necessário entre SECADI e outras secretarias do MEC para que a política antirracista não dependa de boa vontade de um ou outro gestor. “A Política Nacional de Educação não pode tratar educação antirracista como algo paralelo. Não posso pensar o campo da alfabetização ou do ensino da matemática, por exemplo, sem que essa perspectiva esteja colocada”, destacou.
Quem também destacou avanços nesse novo momento político foi a secretária de política de ações afirmativas, combate e superação do racismo do Ministério da Igualdade Racial, Márcia Lima: “Um dos projetos já em andamento é a construção do diálogo sul-sul com países africanos e caribenhos trazendo o desafio dessa formação do professor e das práticas do enfrentamento ao racismo. É muito importante que a gente continue esse diálogo para que a gente construa juntos uma igualdade racial na educação nos diferentes níveis da educação.”
Urgência de formações voltadas para letramento racial
Outro aspecto diz respeito às demandas mais frequentes nas escolas apontadas por gestores. A principal delas está relacionada à orientação sobre casos de racismo. Porém, quando questionados sobre os temas que consideram mais importantes nas escolas, a maioria trouxe a diversidade cultural, literatura e cultura alimentar.
Essa discrepância entre a necessidade das escolas e as demandas consideradas pelos dirigentes como as mais importantes indicam uma resistência ao abordar questões consideradas mais “sensíveis” ou estruturais, como legado da escravização nas Américas, hierarquização de povos e saberes, espaços de poder e tomada de decisão.
É um indicativo de que o letramento racial precisa avançar entre o corpo dirigente. “Não é culpabilizar ninguém, mas entender que as pessoas estão presas nas malhas do racismo. E isso nubla, inclusive, a visão política dos gestores e das gestoras, por isso a libertação é algo que temos que fazer e que aprendemos com a nossa ancestralidade”, avalia Nilma Limo Gomes.
Mesmo que não seja o foco da pesquisa, a ex-Ministra da Igualdade Racial, Mulheres e Direitos Humano considera que os dados encontrados explicitam a lacuna na formação voltada para gestores e equipes técnicas. “Tem aí um sujeito oculto por trás do que nós estamos falando e que tem que ser pressionado para assumir o compromisso com a educação antirracista. A implementação insatisfatória da Lei 10.639 no contexto dos vinte anos de vigência diz respeito às universidades, ao campo de formação de professoras e professores, à pós-graduação.”
“É pelo resgate do intelecto que nós vamos devolver a dignidade para o nosso povo”, Bárbara Carine, professora da UFBA.
Vale lembrar que a Lei 10.639 diz respeito ao ensino de educação e cultura afro-brasileira e africana em toda a extensão curricular da educação básica, incluindo o ensino superior.
Bárbara Carine, professora da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e idealizadora da escola Maria Felipa, a primeira afro-brasileira do país, também integrou o debate de lançamento da pesquisa e destacou o papel da formação para o avanço da perspectiva antirracista.
“É pelo resgate do intelecto que nós vamos devolver a dignidade para o nosso povo. A gente precisa ir para escola compreender sobre todos os elementos da cultura afro-brasileira, como culinária, maculele, samba, turbante, dança afro, cabelo crespo, corpo preto, afinal é pela nossa estampa que a gente vive e morre nesse país”, disse. “Mas é muito importante ressignificar esse lugar da intelectualidade negra. É muito importante entender que a história da humanidade surgiu em África, assim como a matemática, a química, as primeiras formas de constituição societária e de desenvolvimento do conhecimento. É só olhando para o passo, em perspectiva Sankofa, que a gente vai reconstruir a subjetividade do nosso hoje e olhar para o futuro a partir de outros marcadores de positivação histórica e de reconstrução dos impérios que nossos ancestrais morreram defendendo.”
Por: Por Vir