Já sofreu etarismo? Entenda a nova face de um velho problema
Com cada vez mais alunos acima dos 40 anos, sobretudo no ensino superior, discriminação por idade vira desafio para jovens, experientes e para escolas
Aos 66 anos, Cleusa Barros está na segunda graduação na Universidade Federal de Minas Gerais. Formada em 1983 em educação física, atuou por 35 anos como professora e se aposentou. Não querendo deixar a mente parada, a atleta paralímpica resolveu fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e voltou para a UFMG em 2018, para cursar matemática.
Hoje, faz parte do grupo dos cerca de 600 mil universitários acima de 40 anos no Brasil. Uma turma com tendência de crescimento e que, além das dificuldades naturais de retomar os estudos em uma fase mais avançada da vida, está sujeita ao preconceito associado à idade, prática que já tem nome próprio: etarismo.
“Quis começar uma nova graduação depois que me aposentei, porque precisava fazer alguma coisa, não queria ficar parada. Mas já vou fazer 67 anos, então estou fazendo (as disciplinas) bem devagar, porque a minha mente já não é mais aquela de quando eu era mais nova, requer mais esforço”, explica Cleusa.
Em Minas Gerais, ela faz parte de um grupo estimado em cerca de 55 mil pessoas, das quais 8 mil (14,4%) em universidades públicas e 47,1 mil (85,4%) em instituições privadas, de acordo com o Censo da Educação Superior de 2021, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
O aumento do número de pessoas acima de 40 anos nas universidades reflete o incremento da expectativa de vida no país. De acordo com projeção feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil terá 73 milhões de idosos até 2060. Um crescimento de 152% em relação 29 milhões atuais, com uma expectativa de vida média de 77 anos.
Para Jaime Almeida, professor universitário e diretor da célula de Diversidade e Inclusão na FESA Group, que atua no mercado de recrutamento e seleção, esse é um fator importante na construção de carreira das próximas gerações: com maior tempo de vida, maiores são as chances de mudança de profissão.
No entanto, pessoas acima de 40 anos ainda enfrentam barreiras como alunos no ensino superior diferentes das encaradas pelos jovens – e eles podem até mesmo ser parte do desafio chamado etarismo. A colunista do Estado de Minas Alessandra Aragão explica o que o termo significa: “Por definição, é a discriminação e o preconceito baseados na idade, geralmente das gerações mais novas em relação às mais velhas; também conhecido por idadismo ou ageísmo”.
O termo ganhou mais evidência recentemente, diante de um caso na Unisagrado, instituição de ensino superior localizada em Bauru (SP), envolvendo a universitária Patrícia Linares, de 45 anos, e três jovens que gravaram um vídeo em que a discriminam devido à idade. Na gravação, uma das alunas afirma que “40 anos não pode mais fazer faculdade”; outra completa, dizendo que “já era para estar aposentada”.
Mais pessoas 40+ nas universidades
O desafio do etarismo se torna ainda mais importante na medida em que a tendência é de aumento na participação de pessoas acima de 40 anos no ensino superior. “Para muitos, mas principalmente para as mulheres, a graduação é a realização de um sonho. Um sonho protelado por diversos motivos, como criação de filhos, cuidados com a casa ou trabalho por necessidade”, explica a pedagoga e pesquisadora Camila Fernandes.
É foi o caso de Katia Torres, de 54 anos, e de João Ventura, de 44, ambos estudantes de jornalismo que tinham o sonho de se tornar profissionais da área desde a infância, mas tiveram que esperar para colocar o desejo em prática. “Eu falava que, quando crescesse, queria ser jornalista. Mas minha família era muito pobre e isso dificultou meus estudos. Todos os meus amigos estudaram e passaram na faculdade, e eu acabei ficando para trás. Tinha o sonho de passar na federal, o que ainda não consegui, por não ter tido uma capacitação melhor, mas com uma vida financeira mais equilibrada, pude começar o curso”, conta Katia.
“Eu falava, desde criança, que queria ser repórter sem nem ao menos saber o que era jornalismo, mas, por causa da minha perda de visão, que começou quando eu era muito novo, tive que parar os estudos aos 16 anos e só voltei a estudar aos 25 para terminar o ensino médio. Essa é a minha primeira vez na UFMG como aluno”, diz João.
Para ele, que é cego, usa uma bengala para se locomover e é um dos mais velhos da turma, o distanciamento dos colegas de classe no começo da graduação se deu mais pela deficiência visual do que pela idade. “Além de ter entrado na universidade com 40 anos, tenho deficiência visual e sou um homem negro. No começo, a galera que entrou comigo era toda muito nova, então não teve uma aproximação muito natural, até por conta dos assuntos. Mas a gente percebe, até hoje, que muitos não se aproximam nem tanto pela idade, mas mais por conta da deficiência. Muitos tinham medo de não poder ajudar”, avalia.
Tratamento igual para todas as idades
De acordo com a pedagoga e pesquisadora Camila Fernandes, é essencial que universitários de idade mais avançada tenham as mesmas oportunidades que os mais jovens dentro das instituições. “É importante que sejam inseridos e tenham as mesmas oportunidades, mas isso é feito? Os idosos são estimulados a participar de atividades acadêmicas extras? Têm as mesmas oportunidades de concorrer a bolsas como os mais novos?”, questiona.
Cleusa Barros, que cursa matemática na UFMG, é uma das estudantes que aproveitam ao máximo o que a universidade pode oferecer. Paratleta premiada, ela integra a área atlética do Instituto de Ciências Exatas (Icex) e já recebeu vários prêmios pela entidade, além de ter participação ativa em atividades acadêmicas, como o programa “Os Descobridores da Matemática”, que se concentra no ensino da disciplina para crianças. “Já competi muito pela atlética do Icex e eu estou sempre no meio da turma jovem. Teve um campeonato sub-20 em que fui competir e ganhei”, conta, entre risadas.
Virada
Katia Torres, que já é graduada em relações públicas, tem formação em gastronomia e agora cursa jornalismo na PUC Minas, conta que decidiu dar uma virada na carreira depois que sofreu um acidente vascular cerebral. “Tive um AVC em 2018, e com isso repensei minha vida inteira. Decidi que ia fazer tudo o que tenho vontade. Fiquei com sede de vida”, conta. “Tive um chamado interno de atender àquela minha vontade de ser jornalista, queria realizar esse sonho. Estamos vivendo tanta coisa, em um cenário político tão cheio, que é importante sair do nosso conforto e colocar a mão na massa”, avalia.
A decisão de mudar de carreira após problemas de saúde é recorrente. Ailson Santos, de 53, é jornalista e trabalha com consultoria na área da saúde. Após um câncer, decidiu que mudaria a vida de um milhão de pessoas, e que a união das áreas de comunicação e de atenção médica otimizaria o tempo desta meta.
“Tenho 25 anos de profissão com uma atuação muito consistente na área da saúde. Escolhi fazer gestão hospitalar pensando na relação entre as duas carreiras: queria melhorar a jornada do paciente no ambiente hospitalar, o que exige muito da comunicação. Não mudei tanto de área assim, concorda?”
Ambos entraram na faculdade ansiosos e afirmam que a diferença de idade com o restante dos estudantes foi um choque a princípio, mas que não foi motivo de discriminação ou de preconceito, servindo até como incentivador de abordagens. “Nunca tive problemas envolvendo discriminação por idade. Muito pelo contrário, alguns colegas de classe mais novos iam atrás de mim para puxar conversa, porque eu já tinha alguma experiência”, conta Ailson.
“Mas confesso que, no primeiro dia (de aula), deu aquele frio na barriga e me perguntei: ‘O que estou fazendo aqui?’. Mas sempre sou bem acolhida. Minha experiência em comunicação, na área de relações públicas, também me ajuda muito na faculdade”, explica Katia, que entrou na PUC Minas com o benefício da Bolsa Sênior, criada como forma de incentivo à entrada de pessoas acima de 40 anos no ensino superior.
Novos significados para as profissões
Um dos principais incentivos para que pessoas acima de 40 anos entrarem para uma faculdade é a recolocação no mercado. De acordo com o publicitário e consultor de Diversidade da FESA Group Lucas Ribas, de 41 anos, o aumento da expectativa de vida representa uma chance a mais de lançar novo olhar e reinterpretar as profissões.
“Cada vez mais teremos profissionais longevos com carreiras ressignificadas”, afirma. “A busca por novas carreiras vem para que as pessoas não sejam profissionais frustrados. Se você começa uma carreira muito jovem, acumula muitas experiências com pouca idade, mas aos 40 fica sem perspectiva”, complementa.
Para ele, é importante que as equipes de trabalho sejam diversas para além de raça e gênero. “Essas questões vêm sendo trabalhadas com maior foco nos últimos anos nas organizações, que estão entendendo o poder e o impacto positivo da diversidade e da inclusão de uma maneira mais ampla, estrutural”, explica Lucas.
“Diversidade não é caridade. Claro que é preciso dar espaço social, mas também é preciso olhar para a produtividade e a sustentabilidade da empresa, que melhoram muito quando se tem uma equipe diversa”, diz Jaime Almeida, diretor da célula de Diversidade e Inclusão na FESA Group.
O que motiva o etarismo?
A pedagoga e pesquisadora Camila Fernandes avalia que um dos motivos para o etarismo é a falta de educação sobre envelhecimento. “Sou professora do ensino fundamental nos anos iniciais e faço muitos trabalhos com meus alunos nessa perspectiva de educação para o envelhecimento, de tentar desconstruir o preconceito neles, fazendo com que vejam pessoas idosas de forma mais carinhosa e empática. Como seres humanos, elas têm os mesmos direitos que as crianças”, afirma a pesquisadora.
“Eu diria que a entrada no mercado de trabalho de pessoas acima de 40 anos é, em geral, dificultada por um preconceito que já existe há décadas dentro das próprias empresas, talvez com raiz lá atrás, quando a expectativa de vida era muito menor e a pessoa, quando se aproximava dos 40, 50 anos já estava próxima da aposentadoria. Isso foi se perpetuando de forma que, hoje, a gente tem mantido um preconceito que não faz o menor sentido para a sociedade em que vivemos. Hoje, a expectativa de vida já está acima de 70 anos”, complementa Jaime Almeida.
Mulheres
A pedagoga Camila Fernandes também afirma que as mulheres sofrem mais com a discriminação pela idade no ensino superior. De acordo com ela, a universidade foi criada para homens jovens, conceito enraizado que cria dificuldades ainda maiores para universitárias de mais idade.
“Quando chega uma mulher mais velha, ela causa estranhamento. Mas a gente esquece que, além de preparar para o mercado, a universidade tem seu aspecto social. Com certeza, essas mulheres sofrem muito quando são questionadas: ‘O que você está fazendo aqui?’; ‘Roubou a vaga de um jovem?’. Como se não tivessem igualmente feito um exame e sido aprovadas em uma universidade. Elas têm o direito de realizar seus sonhos, de encontrar uma nova profissão, ou de apenas buscar novos conhecimentos”, explica.
Para Thalita Matta, de 41 anos, o caso da Unisagrado foi, além de etarista, uma representação de misoginia que precisa provocar reflexão. Jornalista, ela fez pós-graduação em diversidade e inclusão e hoje trabalha com consultoria na área, no Mais Diversidade.
“A situação me surpreendeu, porque remete a um preconceito com viés de gênero, que considera o fim da vida da mulher junto com a idade reprodutiva. Ou seja, a mulher depois dos 40 não pode ter filho e, portanto, não serve para nada? Isso é muito antigo.”
Por: Estado de Minas