Os futuros que se constroem
Com uma expansão inimaginável há décadas, o ensino superior se apropria da tecnologia e constrói múltiplos futuros
Em meio à Guerra Fria, um cientista norte-americano desacreditado em seu país por teorias não comprovadas acerca do funcionamento cerebral é levado à União Soviética, detentora de uma tecnologia que permite a miniaturização da matéria, para uma viagem rumo ao cérebro de um genial colega soviético que está em coma profundo. Uma nave em miniatura é concebida para o estrangeiro, para que ele capture os estudos do gênio adormecido que permitiriam viagens através do tempo e do espaço com a superação da velocidade da luz.
Os amantes dos livros de ficção científica certamente se lembram do enredo do livro A viagem fantástica II: Rumo ao cérebro, escrito pelo russo Isaac Asimov nos anos 1960, um ano depois de A viagem fantástica (1966), este feito sob encomenda e que não satisfez o autor.
Assim como Asimov, que se mudou para os Estados Unidos ainda criança e tornou-se um dos maiores nomes da literatura de ficção científica, a tentativa de destrinchar os caminhos da humanidade instigou várias mentes. De forma preocupante, as interpretações mais marcantes do futuro são aquelas que nos levam a universos sombrios, como em 1984, escrito por George Orwell no imediato pós-guerra, em 1949, ou em Blade Runner (1982), filme de Ridley Scott. Curiosamente, o sinal se inverte quando o assunto é a projeção do futuro educacional do Brasil e de outros países, com ênfase sempre na ampliação de possibilidades ofertadas pelas sempre mutantes tecnologias.
Vertiginosa expansão
Talvez um bom motivo para a visão otimista tenha sido a transformação pela qual passou o ensino superior no mundo, principalmente a partir dos anos 1960, quando houve uma significativa mudança dos números risíveis de acesso existentes até a metade do século passado. Em Pós-Guerra: uma história da Europa desde 1945, o historiador britânico Tony Judt mostra os dados da expansão (às vezes mal planejada, como na Itália): na Alemanha Ocidental, o número de universitários passou de 108 mil para 400 mil em menos de duas décadas (de 1950 ao final da década seguinte); na França, o total de universitários em 1967 era igual ao de secundaristas em 1956. Um pouco mais tardia, a expansão também chegou ao Brasil em finais dos anos 1960 e, até hoje, teve várias ondas.
Se no início daquela década havia apenas 100 mil estudantes no superior, hoje temos 8,98 milhões, dos quais 41,3% (3,71 milhões) na modalidade EAD. Sem entrar no mérito da questão da qualidade, esse último número talvez sintetize a magnitude das mudanças na educação superior brasileira. Quem apostaria nisso? Nos anos 1990, talvez muita gente já fizesse essa aposta. Sete décadas atrás a defesa dessa hipótese renderia um título de loucura ou desprezo similar ao colhido pelo Albert Morrison da ficção de Asimov.
Um dos mais acurados preditores do futuro da educação no Brasil é o hoje gestor e consultor Maurício Garcia, ex-vice-presidente da Universidade Anhembi Morumbi no início deste século. Bacharel, mestre e doutor em veterinária pela Universidade de São Paulo, Garcia se prevaleceu da cultura familiar, com pai e irmãos engenheiros. Na universidade, dava suporte aos colegas que precisavam analisar estatísticas em suas pesquisas. O gosto pela matemática era acompanhado pela curiosidade tecnológica. No final dos anos 80 começou a mexer com microcomputadores e, pouco depois, abriu uma empresa de softwares. Na virada dos anos 2000, o contato com o professor Gabriel Rodrigues, fundador da Faculdade de Turismo do Morumbi nos anos 1970 (futura Anhembi Morumbi), representou uma quebra na sua trajetória. “Foi aí que fui para a gestão acadêmica”, relembra Garcia. Elaborou o plano de governança corporativa da instituição e começou a pensar o ensino superior de forma mais estratégica.
Em 2008, já trabalhando na Adtalem, instituição global, escreveu um artigo prevendo que o momento das fusões e expansões das IES não teria vida longa. Em artigo naquele ano, disse que aquele momento representava uma segunda onda de expansão do ensino superior (a primeira havia sido a criação das instituições pelos pioneiros da educação privada), a ser superada por uma terceira onda, movida a tecnologia, ou seja, a educação a distância.
“O Fies ainda deu uma sobrevida à segunda onda, caso contrário ela teria murchado mais cedo. Aí, para democratizar o acesso, seria necessário investir em tecnologia. Hoje, nós temos ainda grandes problemas de inclusão. As universidades públicas recebem mais ou menos dois milhões de alunos. As privadas de elite outros dois milhões. Sobram outros cinco milhões que hoje estão matriculados, mas nossa taxa de escolarização ainda é muito baixa”, analisa Garcia.
Ele admite que muitas dessas instituições não estão formando bons profissionais, mas é importante valorizar a escolarização, o que poderá resultar em pais mais preocupados com essa questão e em sucessores mais bem formados.
Ao pensar o que será a educação no futuro – não muito distante –, Garcia aposta num sistema de ensino inteligente ancorado em Inteligência Artificial, com quatro categorias de mecanismos: de predição (em função de diagnósticos), de recomendações (para o desenho de trilhas de aprendizagem), de classificação (para correção de questões dissertativas), generativo (produção de materiais mais personalizados, com montagem de conteúdos específicos).
Essas aplicações requerem um conjunto de tecnologias e não quer dizer que irão substituir os professores (ao menos não todos). “A grande dificuldade é quem vai construir algoritmos, bots, modelos. Os profissionais vão ter de se redirecionar em todas as áreas”, assevera.
Em um artigo publicado em 2018, Garcia diz não ter dúvida sobre a presença cada vez mais expressiva de robôs. Relata já ter um robô para aspirar o pó de sua casa e ressalta a diferença entre essa função e a docência. “Aspirar pó e formar pessoas são coisas muito distintas. Aqueles que ensinam da mesma forma como aspiram pó em casa, esses sim serão substituídos por máquinas. Mas jamais será robotizado um processo de aprendizagem que se baseia na motivação e engajamento dos alunos e que tem na afetividade o cerne de sua estratégia.”
Outra perspectiva de futuro
Doutor em matemática pela Universidade da Califórnia e mestre em psicologia cognitiva pela Federal de Pernambuco, Luciano Meira parte de outro olhar quando pensa em futuro: “não é algo que se preveja, é algo que se constrói”, afirma.
Professor de disciplinas na área de Psicologia e Cultura da UFPE, onde também é consultor em projetos de Educação e comportamento digital, Meira vê como grande desafio das instituições educacionais a criação de uma articulação mais consistente dos ecossistemas físico e digital, de modo que sua interação propicie, ao mesmo tempo, vivências mais ricas do ponto de vista humano, porém sintonizadas com as oportunidades e necessidades de conhecimento do mundo digital. “A pandemia obrigou a um distanciamento físico das pessoas em relação ao campus, houve uma aposta em plataformas digitais que mantivessem as trocas, numa nova arquitetura pedagógica. Mas esse tempo todo de afastamento nos fez retroceder. Agora, há abandono do campus”, avalia.
A conclusão é que há vários recursos tecnológicos que podem, inclusive, ser usados em conjunto na própria sala de aula. Como exemplo, cita a ferramenta mais badalada e comentada do momento, o Chat GPT. “Ela permite experiências interessantes, como fazer com que os alunos produzam textos sobre conceitos de Peirce (Charles, filósofo e um dos pais da semiótica), por exemplo, e a partir deles analisar criticamente as informações pesquisadas.”
Meira, que divide seu tempo entre a UFPE e a empresa que fundou há 13 anos, a Joy Class, busca aprofundar a gamificação por meio de uma plataforma em que os usuários evoluam conforme as missões que conseguem cumprir. “Temos de trabalhar intensamente para engajar as pessoas. A moçada agora quer algo que tenha a ver com o TikTok. Vamos quebrar a cabeça para fazer algo similar”, diz ele, que admite tratar-se de uma nova geração que não se relaciona bem com a escrita, preferindo as interações mais visuais.
Também docente da UFPE, mas nos cursos de graduação e pós em Comunicação Social, Izabela Domingues avalia que o ChatGPT ainda é muito incipiente, não permitindo saber o que prevalecerá, se o auxílio aos estudantes ou sua dominação. Adepta da internet em sala de aula, ela acredita que cada vez mais haverá aulas “em ritmo de jazz”, com espaço para trocas e improvisação.
Aliás, o inusitado apareceu em sua classe: o influenciador digital Bode Gaiato resolveu entrar no curso. “Quando soube, eu logo disse: traz ele para dar aula”. Bode Gaiato faz sucesso com animações em vídeo (veja) e sua popularidade fez que estrelasse inclusive campanhas de conscientização do governo estadual contra a direção após a ingestão de álcool.* Instada a projetar o ensino da próxima década, Domingues aposta em fatos já existentes, como a necessidade de formação continuada constante e a abertura cada vez maior para mudanças constantes de carreira. Mas também em formações “tipo lego”, ou seja, com os estudantes que montam o próprio caminho em cursos mais flexíveis, sem que haja necessariamente uma habilitação final. E, num retorno a um passado bem distante, prevê a conexão entre as áreas de humanas e exatas.
Futuro original
Para instituições sediadas fora dos grandes centros, a busca pelo futuro equivale à busca pela sobrevivência. Em especial após o processo de fusões e aquisições ocorrido nos primeiros anos deste século, muitas IES menores tiveram de projetar as necessidades de seu público ao longo do tempo. É o caso, por exemplo, da Fundação Hermínio Ometto (FHO), de Araras/SP, e do Centro Universitário do Pará (Cesupa), que percorreram caminhos parecidos em suas respectivas áreas.
Sérgio Fiuza, reitor da Cesupa, lembra que, por ocasião de seu primeiro recadastramento no MEC, lançou o curso de medicina, enquanto o mercado se agitava, criando alguns grandes players. Havia pouco tempo, sua IES havia pensado em quatro vertentes para o futuro: financiamento, expansão do sistema, investimento em qualidade e diversidade.
Desses tópicos, o cenário obrigou a investir sobretudo na diversidade. “Vimos que havia uma nova agenda, em termos de público, em que seria preciso enfatizar parcerias com comunidades e empresas e atividades de extensão”, relembra. Isso significou investir na qualidade do curso de medicina, para criar um diferencial local. Mas, além disso, conectar-se a outras instituições. Em 2012, foi fundada uma rede local com outras 12 instituições para pensar na geração de riquezas. Agora, em setembro de 2023, haverá o primeiro processo seletivo do novo mestrado em Inteligência Territorial e Sustentabilidade, que vem sendo estruturado desde 2017. “Começamos a criar uma agenda para impactar a sociedade. Para isso, precisamos mexer em currículos e metodologias, transformar as atividades acadêmicas em entregas para a população”, diz Fiuza.
A mesma sensibilidade teve o reitor da FHO, José Antônio Mendes. Ao perceber que os alunos se envolvem bastante com questões ambientais, a IES criou uma disciplina de sustentabilidade para todos os cursos, tendo como base os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas.
Segundo Mendes, a instituição avaliou o perfil de seu público e constatou a presença de 40% de alunos da cidade e 60% do entorno, na maioria pessoas de baixa renda (classes C e D). A proposta, então, foi a de manter-se relevante para o desenvolvimento regional, facilitando o acesso por meio de bolsas (90% dos alunos têm algum tipo de bolsa) e transporte.
Para combater a deficiência de formação dos ingressantes, há um trabalho de nivelamento da aprendizagem.
Para os próximos anos, a FHO pensa em investir em tecnologia, mas dosando-a com atividades presenciais; quer continuar oferecendo cursos demandados pelo mercado de trabalho local e, entre outras metas, aprofundar as oportunidades para os alunos e a oferta de atividades de extensão. Algumas realidades mais futuristas, ao menos por algum tempo, só serão acessíveis no mundo ficcional.
Por: Revista Ensino Superior