Setor de EAD critica propostas do MEC
Ministro Camilo Santana já reconheceu publicamente a atual incapacidade do MEC para a regulação e fiscalização dos cursos EAD
Mais de três milhões de estudantes ingressaram no ensino superior na modalidade EAD em 2022. Nos últimos anos, os números cresceram exponencialmente, levantando preocupações quanto à qualidade dos cursos. A pandemia explica apenas em parte esse fenômeno. Em 2017, portaria que regulamenta o Decreto n.º 9.057 possibilitou a abertura de polos condicionada ao Conceito Institucional (CI) das instituições. IES com CI 3 podem abrir 50 polos, as de CI 4, 150 polos, e as de CI 5, 250 polos – anuais. A fiscalização passou a ser por meio de documentos, na sede da IES, e não in loco. Críticas não faltaram à época, o que não impediu a expansão dos polos. Os cursos EAD estão presentes em 3.219 municípios brasileiros.
O cuidado com a qualidade dos cursos enfim encontrou eco no Ministério da Educação, que tem sinalizado com nova regulação. O ministro Camilo Santana já afirmou que não é contra o EAD, mas tem feito declarações contundentes. Para o setor EAD, são falas equivocadas, que confundem modalidade com qualidade e generalizam a atuação de todas as IES.
Elizabeth Guedes, presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup), considera que o MEC “foi o grande articulador do caos ao emitir portarias irresponsáveis a partir de 2017, permitindo a abertura de empresas, polos multimarcas, combos, venda de cursos casados. O polo se tornou um endereço no sistema, foi como transformá-lo em terra de ninguém. Saímos de uma situação de absoluto controle e repressão para um libera geral – e sem um sistema de avaliação. O mercado se tornou agressivo e cruel com as IES que querem trabalhar de forma correta”, diz. O momento é de rever políticas de avaliação e institucionais para o setor, “e não culpar as IES”. “O joio e o trigo estão juntos, e há IES sérias oferecendo cursos de qualidade”, afirma.
João Mattar assumiu no final de outubro a presidência da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed). Para ele, “em 2017, as IES estavam com os polos montados, pagando aluguéis, precisavam das autorizações. Com essa abertura, o MEC reconheceu que não tinha capacidade de fiscalizar”.
Ele considera que os esforços por garantir a qualidade são necessários. “Todos concordam amplamente que a educação precisa ter qualidade, presencial e a distância, mas a questão da fiscalização é um problema do MEC. Se a política de avaliação, já estabelecida, não está funcionando, precisa ser revista. O que não faz sentido é impedir cursos EAD”, diz. Há demanda, os números vêm crescendo há anos, ou seja, o cenário atual já era esperado. “Para nós não é surpresa”, enfatiza.
Benhur Gaio, reitor da Uninter, concorda que houve uma liberalidade muito grande nos anos anteriores, e que o MEC quer fazer os ajustes. “O problema é que estão sendo colocadas todas as IES que oferecem EAD num mesmo cenário.
E isso não é a realidade do país. De fato, temos instituições que abusam ao não proporcionar aos alunos as atividades práticas necessárias à sua formação, principalmente em laboratórios físicos. Mas o MEC não está avaliando as IES que estão preocupadas com a qualidade e oferecem aos alunos a prática muito próxima ao presencial, em seus polos. Infelizmente, o MEC está generalizando.” Para ele, é preciso uma leitura mais aprofundada acerca do EAD antes de se criar “um cenário catastrófico” para a modalidade.
O reitor faz coro a uma queixa também recorrente no setor. Ele afirma que a maioria dos que participaram das discussões no MEC, até agora, são contrários ao EAD, como os conselhos de classe, “cuja vinculação é com o Ministério do Trabalho e não com o MEC; eles deveriam fiscalizar o exercício profissional e não a formação”. Para ele, sugestões dessas entidades são bem-vindas e discutidas, mas não as proibições.
A consulta pública
O ministro Camilo Santana já reconheceu publicamente a atual incapacidade do MEC para a regulação e fiscalização dos cursos EAD, ao anunciar a criação de uma agência reguladora, por meio de projeto de lei a ser enviado ao Congresso Nacional. Em outubro, o MEC publicou relatório com 230 páginas para apresentar o conteúdo do que foi discutido no GT-EAD, criado para analisar a oferta na modalidade dos cursos de direito, enfermagem, odontologia e psicologia. Destes, apenas o curso de enfermagem é hoje oferecido no país na modalidade EAD. A partir do estudo feito no GT-EAD, o MEC consolidou propostas e quer a opinião de segmentos da sociedade acerca da pertinência delas.
Até dia 20 de novembro, duas principais propostas e seis subtemas estão em discussão por meio de consulta pública. A primeira tem o objetivo “de elevar os critérios de qualidade que condicionam a oferta de cursos na modalidade EAD”, conforme o MEC, e propõe que o Conceito Institucional (CI) da IES para oferecer cursos EAD seja 4. Atualmente é 3.
A outra proposta, com o objetivo de “valorizar o campo da prática”, aumenta 12 itens à lista de cursos que estariam proibidos na modalidade EAD, para além dos citados acima, ao definir que autoriza cursos EAD “somente quando a exigência de componentes curriculares presenciais não representar carga horária expressiva do curso”. Apenas os cursos que tiverem carga horária presencial obrigatória inferior a 30% da carga horária total poderão ser ofertados no EAD. A referência para a quantidade de atividades realizadas de forma presencial ou a distância é estabelecida pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), e é por meio delas que o MEC quer balizar as autorizações. Com isso, perdem a possibilidade de serem ofertados no EAD, por enquanto, os cursos de biomedicina, ciências da religião, educação física (bacharelado), farmácia, fisioterapia, fonoaudiologia, geologia/engenharia geológica, medicina, nutrição, oceanografia, saúde coletiva e terapia ocupacional. Alguns são ofertados há um bom tempo na modalidade e deixarão de existir. Nas licenciaturas, 88% dos 1.097.982 ingressantes em 2022 estão no EAD. Para esses cursos, o ministro Camilo Santana determinou que a aplicação do Enade – o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes – passe de trienal para anual. O MEC enfatizou que os temas das propostas da consulta pública não contemplam todos os que merecem atenção, como as próprias licenciaturas, que ainda terão uma política regulatória específica, os polos de apoio presencial e a pós-graduação lato sensu.
Opiniões e sugestões
Janes Fidelis, Vp Acadêmico da Vitru, tem posição contrária à exigência de CI 4 para aprovação de cursos. A medida “implica mudança da Lei do Sinaes, que prevê o conceito 3 como satisfatório para avaliação”, aponta. Ele detalha que o credenciamento e recredenciamento aprovado em 2017 precisa de revisão contínua e a elevação do conceito não assegura a qualidade do ensino. Há necessidade de reformulação do instrumento de avaliação, para que contemple a complexidade dos cursos EAD. “Manter o CI 3 e focar na supervisão será mais eficaz”, afirma. Além disso, avaliadores de banca precisam ser atualizados acerca da modalidade.
Para João Mattar, se o IC 3 permite que a IES ofereça cursos presenciais, não faz sentido impedi-la de oferecer o EAD. “Se o MEC considera que o IC 3 é suficiente para o presencial, deveria ser suficiente para o EAD. Isso não impede que o MEC tenha seus critérios mais rígidos para controlar o EAD, mas entendemos que essa subida de régua não seja adequada, porque vai subir só para o EAD. É um preconceito com a modalidade, e já construímos por mais de duas décadas um referencial para EAD no Brasil, com histórico de bons resultados.”
Em relação à segunda proposta, diz Mattar, “não é das diretrizes curriculares que se tira a referência para definir se um curso pode ser presencial ou a distância, porque elas não foram feitas pensando em modalidades. É preciso analisar curso a curso, pode ser fixado um mínimo presencial, e é preciso levar em consideração a liberdade da IES de definir seu projeto pedagógico”.
Gaio considera que na consulta pública há um direcionamento que contraria as metodologias do EAD. Ele detalha o subtema quatro. “Esse ponto vincula inadequadamente as atividades de estágio supervisionado aos 30% de atividades presenciais propostas. Estágio supervisionado não é realizado no polo. É um erro material”, afirma. Ele concorda com Mattar que as DCNs não são parâmetros adequados. “Qual é o estudo que estabelece essa regra de que 30% é o limite máximo para as atividades práticas, para a presencialidade nos polos? Olhando para a literatura de EAD, no mundo todo, esse processo se vincula às características de cada curso, até de cada disciplina.” Tomelin enfatiza a autonomia universitária, diz que “é fundamental respeitá-la”, permitindo que cada instituição defina e aplique sua proposta pedagógica, refletida em documentos como o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), o Projeto Pedagógico Institucional (PPI) e os Projetos Pedagógicos de Cursos (PPCs). Estes documentos estruturam a formação integral dos estudantes. “Em vez de impor critérios rígidos e uniformes, os instrumentos de avaliação deveriam focar na congruência entre o que a instituição se compromete a fazer e o que efetivamente realiza”, diz.
MEC pode fazer mais
A Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) deveria ser o embrião da nova agência reguladora que o MEC implantará. Essa é a sugestão de Gaio. “A Seres veio ocupar um espaço fantástico dentro da estrutura ministerial. Antes era tudo muito distribuído, não havia direcionamento seguro às IES. Ela estabeleceu um processo de regulação e supervisão muito organizado, qualificado e tem profissionais capacitados para desenvolver essas atividades de forma ampliada. Precisamos de um processo de supervisão mais eficiente para evitar ‘os ajustes’ visando somente os ganhos financeiros.”
A evasão nos cursos EAD é maior do que nos presenciais e traz preocupações ao setor. “Entretanto, esse aluno que evadiu não necessariamente vai para o presencial e resolve o problema dele”, diz Mattos, que sugere editais de fomento à pesquisa das questões que envolvem o EAD, a evasão entre elas.
Mattos coordena uma pesquisa para avaliar se o fato de o aluno ter mais competência digital diminui a evasão. O projeto está sendo encaminhado à Fapesp, e será realizado em conjunto com a Univesp, a Universidade Virtual do Estado de São Paulo. Com 10 anos, a Univesp tem 110 mil alunos e é uma exceção entre as instituições públicas, que pouco têm investido na abertura de mais vagas para cursos EAD.
O aperfeiçoamento das metodologias EAD é o foco da Univesp. Simone Telles, pró-reitora acadêmica, afirma que “as pessoas não entenderam ainda que a escola não está mudando a sua forma de ensinar, mas a comunidade já mudou a forma de aprender. A sensação que eu tenho é que tirar ou punir o EAD causará uma evasão maior no ensino superior”. Para ela, o que faz diferença na qualidade não é a modalidade, mas a metodologia. Nesse sentido, ela diz que não são muitos os professores da esfera pública preparados para o uso da tecnologia.
Na Univesp, há cursos de pedagogia. “Proponho metodologia arrojada, baseada em projetos, o aluno vai à escola, desenvolve um projeto, interage comigo; proponho uma disciplina que faz a ligação entre a necessidade do aluno, a escola e o que é formação”, detalha. As tecnologias vão se aprofundar. “Vou ensinar os pedagogos a usar o ChatGPT”, finaliza.
Elizabeth, da Anup, também pondera nesse sentido: “Enquanto o mundo progride o Brasil fica tentando pautar o passado. As crianças que vêm por aí não vão mais aceitar cursos 100% presenciais. Com o avanço da IA e da tecnologia, não dá para propor como tendência a não utilização desses instrumentos para auxiliar o professor a entregar seu conteúdo”.
João Raphael Maia é professor e coordenador do curso presencial de farmácia em uma unidade no Rio de Janeiro e tutor de EAD, para turmas de todo o Brasil. Ele trabalha para uma holding com forte presença no setor. É entusiasta do ensino digital e acompanha as movimentações do MEC com preocupação.
Ele compara as turmas no presencial e no EAD. “Numa turma de ensino digital, há pessoas do Acre, Espírito Santo, Bahia. Trabalhamos os regionalismos, as questões que são próprias de cada comunidade. Por exemplo, na área da farmácia, aparece a questão da utilização de substâncias por populações ribeirinhas e indígenas. Uma turma diversa é muito mais rica e interessante. É muito diferente de um recorte de sala de aula tradicional, em que os alunos têm vivências mais parecidas.”
Por: Revista Ensino Superior