EAD tem de ter presencial como referência
A valorização do projeto pedagógico de cada IES e a avaliação da execução constituem um processo que gera qualidade do curso
A qualidade dos cursos EAD no Brasil continua a render troca de farpas entre o setor e o Ministério da Educação. Resultados do Enade apontam a necessidade urgente de melhoria, mas há gestores e especialistas que questionam os parâmetros do MEC colocados à mesa. Há, entretanto, uma certeza: a oferta de cursos EAD no país é grande e – atenção – é muito diversificada.
“Há modelos predominantes, porque existem grupos grandes, com muitos alunos, mas a educação a distância é absolutamente diversa”, diz Betina Von Staa, doutora em linguística, à frente da Comissão de ética e qualidade da Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED) e coordenadora do Censo EAD.Br, realizado pela entidade há 15 anos. “No Censo, além de seis grupos grandes, há outros 79 pequenos grupos que participam respondendo ao questionário”, diz Betina, para exemplificar essa diversidade.
Para ela, a qualidade está vinculada a “uma proposta pedagógica clara, com um objetivo claro, fazer esse objetivo acontecer na oferta de cursos da IES e acompanhar os resultados. O interessante é ter a proposta, criar o curso, mesclar momentos a distância, presenciais, síncronos e assíncronos e avaliar o resultado. Temos muita oferta com esse perfil. O governo diz que 40% do curso têm de ser com momentos presenciais, por exemplo, e as IES vão se adequando. Mas têm de ser presenciais ou síncronos por quê? O importante é chegar à melhor combinação em função da realidade e do objetivo que o curso quer atingir. É claro que isso é difícil de regular, é mais fácil dar uma canetada e vir com um número mágico. Esse número mágico não existe”.
“Uma proposta pedagógica robusta é fundamental”, concorda Luciana Machado, superintendente acadêmica da Fipecafi. Ela acrescenta que bons conteúdos e a maneira como são entregues fazem a diferença. Dois cursos EAD oferecidos por essa IES paulistana conquistaram nota 5 no Enade, ciências contábeis – que já repetiu a façanha em ciclos anteriores – e administração. Na graduação, a Fipecafi tem cerca de 900 alunos no EAD e 100 no presencial.
“Os conteúdos são produzidos pelos professores, temos curadoria pedagógica. Não temos fábricas de conteúdo e esse é um ponto importante. Há IES que não produzem o próprio material e sequer controlam a qualidade do que está sendo ofertado.” A flexibilidade é a característica mais requisitada daqueles que buscam cursos EAD, ela tem de existir, mas também é preciso haver interação.
Tanto na graduação quanto no MBA, os cursos da Fipecafi têm 25% de carga horária síncrona – interação ao vivo com o docente responsável e colegas – e 75% de carga horária assíncrona. O aluno conta com materiais de estudo – vídeos, podcasts, sugestões e indicações de leituras.
A aula online não é expositiva. “Os docentes tratam da aplicabilidade do conteúdo, estudos de caso, exemplos práticos e há participação de pessoas do mercado. A presença na aula é flexível e as gravações integrais dos encontros ficam disponíveis, assim, o aluno pode assistir a uma ou mais aulas gravadas, ou mesmo rever o conteúdo discutido em sala quantas vezes desejar.” Há controle quanto ao número de participantes das aulas síncronas. “O ideal é em torno de 40 alunos.”
A avaliação é contínua e há uma prova no final do semestre. Essa prova tem sido online, mas há a expectativa de que seja presencial, na sede da Fipecafi, em São Paulo, mesmo para aqueles que são de regiões distantes. “Antes da pandemia, as provas eram presenciais e os alunos vinham”, conta Luciana. A instituição não tem polos. Com ticket alto, nichada, a maioria dos estudantes que busca os cursos da Fipecafi já tem uma graduação e há, inclusive, mestres e doutores entre eles.
No EAD como no presencial
“Não tratamos o EAD de maneira distinta do presencial, tanto do ponto de vista da gestão acadêmica quanto do ponto de vista de entrega de conteúdo”, conta Luciana. O mesmo posicionamento tem as Faculdades de Tecnologia (Fatecs) do Centro Paula Souza, instituição estadual com 77 unidades em todo o estado de São Paulo e cerca de 90 mil alunos, nas modalidades EAD e presencial.
O curso de gestão empresarial é o único 100% EAD da instituição e com ele a Fatec de Capão Bonito alcançou nota 5 no Enade pela segunda vez consecutiva. “O projeto pedagógico do curso EAD é alinhado ao do curso presencial. O curso EAD se diferencia apenas no formato da oferta”, conta André Galvão, coordenador pedagógico.
Na modalidade EAD, o curso de gestão empresarial é oferecido na Fatec sede, em São Paulo, e em 48 polos em todo o estado, reunindo cerca de oito mil alunos. Implantado em 2014, em média, são oferecidas 40 vagas em cada unidade, portanto, cerca de 1.885 vagas semestrais.
Outro ponto de intersecção entre esses cursos é a qualificação dos professores contratados e a responsabilidade direta deles com as disciplinas que ministram. “Temos professores, são os mesmos que lecionam no presencial. Temos uma figura de tutoria para suporte administrativo e acadêmico, mas os professores dão atendimento aos alunos, eles têm o papel equivalente ao do professor presencial”, explica Luciana.
“Aqui chamamos mediadores online; são todos professores pós-graduados na área de atuação e com experiência profissional”, conta Galvão. Há a coordenação, o orientador de polo, e toda a estrutura que acompanha o projeto pedagógico nas 27 unidades que oferecem o curso na modalidade presencial igualmente atuam na modalidade EAD. As provas são presenciais.
Autonomia do aluno
Maturidade e interesse caracterizam a maior parte dos alunos da Fipecafi. Há, entretanto, aqueles que apostam em supostas facilidades de um curso EAD. Essa aposta gera o que Luciana chama de “evasão boa”. Apesar de serem avisados quanto às exigências do curso no processo seletivo, os que assim pensam podem acabar desistindo. “Para absorver o conteúdo é preciso uma rotina intensa de estudos”, diz Luciana. Nas Fatecs, o perfil dos alunos também se configura de pessoas que buscam a segunda graduação e trabalham. “Entendemos que o aluno do EAD tem de ter uma predisposição maior para a gestão do tempo. Ele tem mais autonomia e protagonismo no processo de ensino-aprendizagem”, detalha Galvão.
No começo de cada curso, os calouros das turmas EAD das Fatecs recebem acolhimento específico. Por meio de manual e palestra os alunos são orientados quanto ao trânsito no ambiente virtual de aprendizagem, à interação com os professores e coordenadores. “Isso precisa ser bem trabalhado”, diz André, em função dos momentos assíncronos, nos quais o aluno pode contar com o apoio remoto do professor e, em alguns casos, dos coordenadores.
Correções de rota
Valorizar o projeto pedagógico de cada instituição e avaliar a execução constituem um processo que gera qualidade do curso e seu aprimoramento contínuo, afirma Betina. “É possível chegar à conclusão de que algo deu errado e rever a prática.”
Galvão traz um exemplo dessa conjuntura. O curso de gestão empresarial é ofertado em seis semestres: são 2.400 horas de matriz curricular, 240 horas de estágio e 160 horas para o trabalho de conclusão de curso, o TCC. No início da oferta do curso, nem todos os alunos tinham o aproveitamento esperado na disciplina projeto integrador, que está presente na grade curricular em todos os semestres. Nela, a proposta é integrar os conteúdos do semestre, pressupondo a multidisciplinaridade. Havia retenções nessa disciplina.
A coordenação pedagógica realizou estudo para entender onde estava o problema. O nó estava no fato de a disciplina ter atividades em grupo, e a dificuldade era exatamente a interação entre os alunos. A primeira correção de rota foi modificar a maneira de orientar e interagir com esses alunos e seus grupos. Além do professor que fazia a monitoria online da disciplina, foi necessária a atuação de coordenadores, que passaram a acompanhar os alunos no sentido de demonstrar a viabilidade da realização das atividades em grupo e a distância.
No trabalho de manutenção da qualidade do curso, Galvão destaca o papel do responsável pela disciplina. Não é o professor, mas um profissional que observa a proposta pedagógica, a maneira de ofertá-la, o objetivo educacional, a metodologia proposta, para poder atualizá-la. “Em cada disciplina, há atuação desse profissional”, conta. No caso do projeto integrador houve ainda mais profissionais se debruçando para verificar o desenvolvimento e realização das atividades dos alunos.
A conta fecha?
Luciana, da Fipecafi, rebate a ideia corrente de que cursos presenciais estão mais vinculados à qualidade por exigirem estrutura. “O ponto é que um EAD de qualidade também exige recursos estruturais, tecnológicos e didáticos. E eles são caros. Se as IES utilizam uma estrutura mínima para escalar em demasia, elas terão um crescimento que não condiz com o crescimento da qualidade.”
Embora a importância do EAD para facilitar o acesso ao ensino superior seja reconhecida por todo o setor, assim como a necessidade de mensalidades a preços módicos, a conta não fecha com facilidade. “Na minha opinião, há um trade-off entre qualidade e escala”, afirma Luciana. “O nosso EAD tem mensalidade mais alta porque não quer gerar escala. E queremos que os alunos tenham uma experiência equivalente à do curso presencial. Isso impossibilita escala grande e mensalidade baixa.”
O que faz um curso EAD ser caro ou barato é a interação, afirma Simone Telles, diretora acadêmica da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp). E a qualidade de um curso, ela afirma, está totalmente relacionada à oferta de grande interação entre os alunos, professores, tutores, doutores, além de prática contextualizada e atividades de extensão.
Por: Revista Ensino Superior