Conservação e restauração, oportunidade para IES
No Brasil, apenas quatro instituições ofertam a graduação; Curso pode trazer uma movimentação positiva para o mercado
Em tempos de educação a distância e aulas ministradas através de telas, a oferta dos cursos que demandam atividades manuais parece perder força. No caso da formação em conservação e restauração de bens culturais, as alternativas para quem deseja seguir carreira eram mínimas antes mesmo da popularização do ensino remoto. Invisível para o setor privado, essa graduação está presente em apenas quatro instituições de ensino superior brasileiras, todas federais – UFMG, em Minas Gerais; UFRJ, no Rio de Janeiro; UFPel, em Pelotas, no Rio Grande do Sul; e a UFPA, no Pará. O investimento na área, entretanto, pode trazer uma movimentação positiva para o mercado que, em consequência da baixa oferta de cursos, ainda conta com poucos conservadores-restauradores e um vasto espaço à espera desses profissionais.
Para Tatiana Russo dos Reis, conservadora-restauradora na Pinacoteca de São Paulo, embora existam pessoas interessadas, o alto investimento financeiro e o nível de conhecimento das IES se tornaram um empecilho para a oferta do curso. “Há uma falta de entendimento das universidades sobre as diferenças entre o trabalho do artista, do museólogo, do conservador e do restaurador. Quando falo que sou restauradora, a primeira coisa que ouço é ‘que lindo, você mexe com arte. Tem de ter um dom’. E não. É um trabalho cada vez mais técnico e menos artístico. Falta essa informação sobre o que de fato faz um conservador-restaurador”, diz.
Mais compreensão sobre a profissão pode ser a chave para a criação de cursos que formarão profissionais para atuar num mercado de grande potencial. “Muitas vezes é mais barato abrir um curso de museologia, que é todo teórico, do que um curso de restauração, que requer ateliês, laboratórios e equipamentos específicos. Tem demanda e tem procura, mas a oferta esbarra nessa questão do custo. Agora, se a universidade tem um curso de química, por exemplo, já é mais de meio caminho andado. Não fica um curso caro para implementar. Além do mais, medicina e odontologia também são cursos caros”, pontua.
A desvalorização do patrimônio cultural é outro fator para a escassez no número de graduações, que resulta em uma lacuna de mão de obra qualificada. “Há pouco interesse do Estado nas políticas culturais e isso talvez parta do pensamento de que a cultura não gera renda. Mas o fato é que gera”, afirma Ana Carolina Boaventura, conservadora do Museu de Arte Brasileira (MAB) da Fundação Armando Álvares Penteado, a FAAP. “O turismo é uma ferramenta de renda. Valorizar o patrimônio é uma forma de gerar mais interesse e aumentar a procura pelo país”, exemplifica. No MAB, Ana Carolina divide os cuidados do acervo com sua coordenadora, Maria Cristina Ribeiro. Juntas, as duas se empenham para tratar das mais de 4 mil obras da coleção.
Em 2022, a dupla estabeleceu, em parceria com a FAAP, um convênio entre o laboratório de conservação e a faculdade de moda. “Não era nossa expertise, porque não dá para saber tudo. Então pensamos ‘se temos um curso com alunos que estudam para se tornarem especialistas, por que não tê-los contribuindo com esse conhecimento?’. O coordenador do curso de moda conseguiu uma bolsa de desconto e ofertamos uma espécie de estágio. Recebemos três alunas com quem catalogamos, documentamos, restauramos e conseguimos tratar de quase toda a coleção que, antes, era trabalhada a passos de tartaruga”, relata. Em todo o Brasil, mais de 3,8 mil museus contam a história do país através de obras de arte, fotografias e outros arquivos históricos – bens de diferentes materiais que exigem um cuidado tão cauteloso quanto o recebido pelo universo têxtil do MAB.
Ofertar para fortalecer
Há 15 anos no núcleo de conservação e restauração da Pinacoteca – que hoje conta com outros 11 profissionais, sendo a maior equipe do país –, Tatiana Russo enxerga de maneira positiva o desempenho do país nesse setor. “O Brasil não está muito atrás dos outros países. É como se cada IES ou se cada país tivesse um conhecimento um pouco maior em certos materiais. Se falarmos em madeira policromada, por exemplo, é o Brasil quem sai na frente porque temos uma quantidade muito grande de patrimônio produzido com esse material.”
Na avaliação da restauradora, esse tipo de conhecimento específico pode ser mais bem trabalhado com a expansão da graduação. “Se ampliarmos a rede de universidades que oferecem o curso, conseguiremos ter o básico para todos, como aprendizados sobre pintura, escultura e papel. Mas também passamos a ter força em conhecimentos mais pontuais”, argumenta.
Ela chama atenção para a baixa oferta de cursos. “Se torna uma profissão elitista. Não são todas as pessoas que têm condições de sair do lugar onde vivem para cursar a graduação nas instituições em que são oferecidas”, comenta. Mariana Onofri, conservadora-restauradora formada pela UFMG, enxerga o aumento no leque de cursos como fundamental para o desenvolvimento desse setor. “O curso da UFPA é o mais recente entre os bacharelados e o único na região Norte. Com essa oferta, começamos a defender e a preservar o patrimônio cultural encontrado por lá. Na região Sudeste, por exemplo, não há oferta de cursos em São Paulo, um estado quedeveria ter. Também não há um curso de graduação no Nordeste e faz falta. Quanto mais profissionais, mais fortalecidos nós ficamos”, diz.
Laços com a educação básica
No Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo, um curso de pós-graduação intitulado “Patrimônio Cultural e Memória” foi ofertado no formato presencial entre 2019 e o início de 2023. O programa formou cerca de 10 profissionais na primeira turma, mas a pouca adesão levou à sua descontinuidade. Coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo da IES, Sérgio Lessa atribui a falta de conhecimento sobre a importância de bens culturais como um dos fatores que levaram ao desinteresse. “As pessoas não sabem para quê serve o tombamento de um festejo ou de uma receita que retrata a nossa cultura. Precisamos começar a divulgar isso no ensino fundamental, criar pessoas com esse foco para que possam valorizar esse patrimônio. A educação precisa ser mais abrangente”, pondera.
Regulamentação e valorização da profissão
“Além de proteger a nossa arte, preservamos também a nossa história, memória e democracia”, defende Mariana Onofri. Em Brasília, a profissional já atuou no laboratório de conservação e restauro da Câmara dos Deputados, quando começou a acompanhar de perto as discussões do âmbito político. Projetos em prol da regulamentação da profissão são discutidos há pelo menos 14 anos. Após idas e vindas, o Projeto de Lei 1.183/2019 – que visa regulamentar o exercício profissional – aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).
Para Mariana, os ataques golpistas vistos no Palácio do Planalto e no Palácio do Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 8 de janeiro evidenciaram a necessidade de investir nos especialistas de conservação e restauração. “Como a Câmara tem um grupo de profissionais formados, a situação pôde ser rapidamente equilibrada. No dia 9 de janeiro, os restauradores estavam lá cedinho para avaliar e recuperar os itens. As obras foram levadas ao laboratório para que a equipe pudesse recuperar o estrago. Se não fossem esses especialistas, o que teria acontecido? Perderíamos todos aqueles itens?”, indaga.
Em busca do sonhado reconhecimento, estudantes e profissionais formados vivem na prática o verso declamado pelo compositor Gonzaguinha: A gente quer valer nosso suor. Sem a regulamentação do exercício profissional não há piso salarial. Além de uma margem para ações antiéticas e danos irreversíveis ao patrimônio cultural nacional. “Se uma pessoa formada em direito decidir dizer que é conservadora-restauradora, não há órgão ou sindicato que a impeça. É desrespeitoso, porque nos dedicamos para trabalhar nessa área. Todo o nosso patrimônio cultural está em jogo quando falamos da regulamentação”, afirma Mariana. Filósofo e estudante de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis na UFMG, Luís Henrique de Azevedo destaca que os processos são diferentes de uma manutenção ou reparo. “É um campo de conhecimento e exige teoria. Restaurar é mais do que ação, também representa pensamento e reflexão”, justifica.
Por: Revista Ensino Superior