Povos indígenas: escolas devem aprender com a diversidade
Apesar da pluralidade étnica e do Dia dos Povos Indígenas também ser uma reflexão sobre isso, escolas precisam abrir as portas para diversidade o ano todo
“Tenho um colar de muitas histórias e diferentes etnias”. É a partir dessa frase, da escritora potiguara Graça Graúna (2016), em Canção Peregrina, que lanço o convite para uma reflexão sobre assuntos pertinentes à temática indígena.
Todos os anos, no mês de abril, despontam uma série de atividades alusivas ao dia 19, celebrado como o Dia dos Povos Indígenas, nome inclusive que em 2022 foi justamente retificado, substituindo o que era, desde 1943, o Dia do Índio. O objetivo foi corrigir um erro histórico ao atribuir genérica e pejorativamente a palavra “índio” sem considerar as especificidades linguísticas e culturais dos povos que aqui já viviam. Foi uma forma de explicitar a diversidade de 305 etnias e culturas dos povos originários no Brasil.
Mosaico de etnias e culturas
E a diversidade é um ponto central quando falamos dos povos originários e um exemplo é o território onde vivo. Sou natural de Roraima, estado no extremo-norte brasileiro, lugar que se pintou um mosaico multiétnico e cultural ímpar. Metade do território é demarcado em Terras Indígenas, onde habitam 11 etnias, reconhecidas pelas instituições responsáveis, sendo Macuxi, Wapichana e Yanomami as mais numerosas e conhecidas.
No entanto, o estado conta ainda com diversos povos que deixaram suas regiões, principalmente do Nordeste – inclusive, há um livro intitulado Filhos do Norte, netos do Nordeste, do professor e poeta Eliaquim Rufino, que conta essa saga. Há também pessoas que vieram de outros países em diferentes épocas, mas que nos últimos anos intensificaram o fluxo migratório venezuelano, trazendo indígenas desse outro país, como o povo Warao, contribuindo para um caldeirão pluriétnico.
A minha busca identitária dentro desse cenário prova, mais uma vez, essa diversidade. Nasci em um território de predominância do povo Macuxi, onde está localizada a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, mas sendo indígena da etnia Wapichana pelo lado materno.
O povo Wapichana é originário do tronco linguístico Aruak, afiliada geneticamente à família linguística Arawak, nome de uma língua falada na costa guianesa da América do Sul, na Venezuela, na Guiana, no Suriname e na Guiana Francesa.
Com pele e cabelos um pouco mais claros, rompendo fisicamente com o estereótipo físico formado no imaginário das pessoas de como é (ou não) uma pessoa indígena, começaram emergir em mim algumas inquietações pertinentes e que foram somadas a outras, fruto de uma generalização, a mesma que faz acreditar erroneamente que o uso de roupas, de calçados, possuir aparelho celular, andar de carro, morar em casa de alvenaria ou viajar de avião e estudar nos faz deixar de ser indígenas.
Atualmente, constituída de aceitação e autoafirmação, sei a minha identidade e como ela fortalece o movimento tanto de luta quanto de resistência.
Dia dos Povos Indígenas na escola
Apesar de toda a pluralidade cultural dos povos originários e da tentativa de fazer o Dia dos Povos Indígenas também ser uma reflexão sobre isso, lamentavelmente, a maneira que ocorrem as atividades no ambiente escolar, principalmente no Ensino Infantil e nos Anos Iniciais, continua sendo estereotipada e estigmatizada. Como se não bastasse, ainda há o reforço da imagem do indígena selvagem, atrasado e preguiçoso, desconectada do tempo presente. Mantém-se congelada a figura de um indígena dos anos 1500.
Essa representação dos povos originários vem sendo largamente (re)produzida desde a chegada dos europeus no continente americano. Os livros didáticos estão repletos de informações falseadas, inconsistentes e que insistem em muitos casos usar imagens ou fotografias de grupos étnicos indígenas alheio aos povos que habitam ou habitaram o Brasil.
E ainda há mais: temos uma data estanque que, apesar de importante para fomentar reflexão, é deixada de lado no dia seguinte e somente retomada no próximo ano, assinalando quase sempre a ausência de continuidade no trabalho pedagógico com essa finalidade.
Abordar sobre a ancestralidade é sempre sensível e complexo, especialmente por se tratar de questões raciais e étnicas, como dito anteriormente. São séculos de discriminação e inferiorização sofridas pelos povos originários, como as imposições linguísticas, que reduziram as línguas maternas indígenas de quase 600 mil línguas para a cerca de 154, atualmente. Há também questões religiosas que, desde o período de colonização, renegam práticas de xamanismo e pajelança comuns aos distintos grupos étnicos indígenas.
O preconceito atinge os povos originários pelo modo de vestir, de comer, de se comportar, de agir, de pensar, de trabalhar e tantos outros, mostrando que o encontro de culturas exigiu lutas e resistências que ainda são e precisam estar presentes nos dias de hoje.
Lei 11.645 em todos os componentes
Por isso, como professora indígena e de História, entendo os (constantes) desafios dentro dos muros escolares ou das aulas com os estudantes e para além deles.
A forma de abordar as histórias e culturas indígenas nas escolas, especialmente a partir da Lei 11.645, que torna obrigatório o estudo da História e Cultura Indígena e Afro-brasileira nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio da Educação Básica, quer seja nas escolas da rede pública quanto da rede privada, colocou em xeque algumas verdades consideradas antes absolutas. Posso aqui citar que a referida lei levou responsabilidade aos professores/as de todos os componentes curriculares – sem exceção -, o que impele muitos deles a terem um olhar sensível e responsável para trabalhar essas temáticas em suas respectivas aulas.
Para mim, uma sugestão é fazer uso e abuso das etnociências, por exemplo, para explicar assuntos do cotidiano de alunos indígenas e não indígenas a partir de saberes dos povos originários. Para isso, vale pesquisar, buscar produções de educadores e especialistas indígenas e até mesmo convidá-los para irem compartilhar experiências e conhecimentos nas escolas.
No entanto, a lei não abrange o Ensino Superior para os cursos de licenciaturas, voltados para a formação de professores, ficando à mercê das instituições e professores a sensibilidade de voltarem um olhar para seus currículos e fazerem os ajustes para que a lei também venha ser contemplada, pois acredita-se que essa seja uma estratégia viável e assertiva, uma vez que existe a necessidade na formação inicial, para que se evite a perpetuação de uma história ocidentalizada.
Porém, o maior desafio é ir além do refletir e que de fato alcance o agir no cotidiano, onde cada lugar seja espaço de informação e rupturas de histórias homogeneizadas e excludentes. Assim, há esperança que essas e outras ideias se efetivem numa perspectiva de decolonialidade em nossas comunidades, em nossas escolas, na vida dos nossos estudantes, pois na condição de indígena da etnia Wapichana e de professora de História, percebo a necessidade e importância de se entender sobre pluralidade e diversidade num país multiétnico como o Brasil.
Por: Nova Escola