O que fazer diante das oportunidades para IA na educação?
Acesso a novas possibilidades de aprendizagem depende de políticas públicas e formação de professores que traduzam para sala de aula o que sistemas de inteligência artificial têm a oferecer
Entre as oportunidades para a educação, os riscos para a democracia e os meios de lidar com uma realidade ditada por algoritmos, o seminário “IA em Educação e Cultura: Estratégias para Combater Desigualdades”, promovido pela Fundação Itaú, abordou os mais recentes avanços no campo da inteligência artificial sob as perspectivas de segurança, inovação, diversidade, acesso, inclusão e equidade.
O evento, realizado em São Paulo (SP), na terça (28) e na quarta-feira (29), também deu especial atenção à manipulação da realidade por sistemas de computador e seu impacto na democracia. “Tenho discutido frequentemente o quanto o direito à realidade é um imperativo do design ético e sustentável. As viagens negativas têm um papel crucial nesse processo, assegurando nossos valores, práticas e signos. Além disso, garantem a transmissão do conhecimento entre gerações, moldando os sujeitos e nossas relações sociais, culturais, emocionais e econômicas”, disse Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú.
Em uma fala no início dos painéis, o executivo da Fundação Itaú argumentou que maneiras de perceber a realidade já estão sendo impactadas, por mais que a neurociência nos mostre que o cérebro constrói a realidade a partir das informações sensoriais e interpretações, influenciadas pela experiência de vida de cada um. “Visão, audição, olfato, paladar e tato captam estímulos do ambiente e os transmitem ao cérebro, que os processa e cria uma representação interna do mundo. Essa percepção advém também de nossas experiências passadas e expectativas, contextos culturais e históricos. Isso significa que a realidade que percebemos é, em grande parte, uma construção subjetiva. Embora nossos cérebros sejam capazes de criar uma imagem coesa do mundo, essa imagem pode ser facilmente distorcida por informações falsas e manipuladas.”
Eduardo lembrou ainda de um filme clássico do cinema, “Matrix”, uma obra de ficção científica lançada em 1999 que levou plateias ao redor do mundo a questionar a natureza da realidade e a importância de ferramentas éticas para distinguir a verdade das simulações. A complexidade da inteligência artificial requer colaboração para garantir que os avanços beneficiem a todos, evitando o aprofundamento das desigualdades. “O artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos ressalta a necessidade de as pessoas participarem da produção tecnológica e científica, mas também se beneficiarem dela.”
Conceito de Inteligência Artificial
A participação dos convidados teve início com a mesa “De que inteligência artificial estamos falando?”. O professor Virgílio Almeida, integrante do Departamento de Ciência da Computação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e de uma cátedra no Instituto de Estudos Avançados da USP (Universidade de São Paulo), fez uma rápida linha do tempo de inventos que marcaram a evolução tecnológica para questionar como as sociedades se relacionam com cada um deles.
“Vemos que a evolução histórica sempre trouxe grandes saltos nas organizações da sociedade. A máquina a vapor, a industrialização, o microscópio e o telescópio foram ferramentas que nos permitiram explorar grandes e pequenas distâncias”, descreveu.
“Mas agora temos uma ferramenta, na verdade, um conjunto de técnicas capaz de executar tarefas que até então eram consideradas típicas da cognição humana, como a linguagem, a tomada de decisão, a solução de problemas e a tradução de línguas. De repente, vemos uma ferramenta composta por algoritmos que operam com base em dados, nos quais essas ferramentas aprendem e buscam conhecimento. Esses modelos de dados são organizados de maneiras que permitem a essas ferramentas realizar tarefas que achávamos que só os humanos poderiam fazer, como traduzir rapidamente de uma língua para outra, identificar rostos, e muito mais”.
“A pergunta que sempre surge é: dado que existe essa ferramenta, quais são as implicações para o futuro?”, questionou. Diante disso, Virgílio defende que seja ampliado o debate sobre o impacto das novas tecnologias, como o ChatGPT, na sociedade brasileira. Segundo ele, é importante que as conversas incluam temas como o futuro dos jovens, a transição geracional, e como educadores e o governo vão se adaptar à evolução da inteligência artificial.
Em uma participação a distância, direto dos Estados Unidos, a pesquisadora e consultora em tecnologia Nina da Hora considera que o conceito de inteligência artificial ainda está em evolução. Se na década de 1980 o foco estava na computação e em robôs, agora especialistas tentam desenvolver uma visão mais ampla e colaborativa. “Dentro desse conjunto de definições, a que eu tenho mais trabalhado e que está mais próxima da colaboração é o conceito conectado à sociedade. A inteligência artificial tem sido desenvolvida e pensada por diferentes mãos, visando soluções que não substituem bons seres humanos, mas que oferecem algum tipo de suporte.”
Silvio Meira, cofundador e cientista-chefe da empresa de tecnologia TDS Company, convidou o público a pensar a inteligência artificial como uma nova dimensão da inteligência. Ele considera que a inteligência individual possui três dimensões: processamento de informação, capacidade de se articular com outras entidades e autonomia. Para o professor, estamos vendo sistemas capazes de imitar a inteligência humana em várias áreas e realizar feitos impressionantes, como passar em provas para o exercício da medicina nos EUA com notas muito superiores às humanas, ter alto desempenho em competições de matemática. Com esse cenário, Silvio avalia ser necessário repensar o conceito de inteligência humana, que antes se baseava em provas como a redação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), mas agora precisa considerar modelos computacionais sofisticados.
Perguntas importantes sobre inteligência artificial
Com a evolução dos sistemas, Silvio argumenta que as capacidades humanas podem ser superadas em diversas áreas cognitivas e criativas (atingindo designers, jornalistas, engenheiros e advogados), o que exige novas definições de inteligência e inteligência artificial. Na sequência, o professor Virgílio adicionou ao painel quatro perguntas que todos os interessados no tema devem se fazer:
- Qual o impacto da inteligência artificial sobre o trabalho?
- A inteligência artificial vai aumentar ou diminuir os vieses humanos, a discriminação e as desigualdades sociais?
- Qual é a capacidade dos sistemas de monitorar cada indivíduo e criar um vigilantismo sobre a sociedade?
- A inteligência artificial que vemos sendo desenvolvida pelas grandes companhias de tecnologia dos Estados Unidos e, em menor escala, na China, vai preservar ou acabar com a democracia?
Já Fábio Cozman, diretor do Centro de Inteligência Artificial na USP, defende que a maneira como respondermos a essas questões pode indicar se queremos tornar a inteligência artificial um bem comum ou não. Para ele, não se pode pensar a inteligência artificial apenas para um subsetor da sociedade que a usa para aumentar as vendas, direcionar o consumo e manipular grupos sociais. Outro ponto defendido por ele é que está em jogo também o senso de soberania. “Essa política tem que vir do governo. O que seria a soberania no caso da inteligência artificial? Se pensarmos no conceito tradicional de soberania, ela trata da capacidade de controle do território. Quando passamos para a questão digital, os contornos não existem mais. Então, o algoritmo do TikTok, que faz um sucesso danado nos Estados Unidos, vai fazer sucesso aqui. Por isso, a nossa capacidade de buscar uma soberania digital, em outras palavras, de ter algum tipo de controle, ainda é limitada”.
Oportunidades, segundo ele, não faltam, uma vez que o país possui quantidade e diversidade de dados em várias áreas, como saúde, educação e meio ambiente, que são base valiosa para o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial. Além disso, o Brasil tem um grande mercado e oportunidades ligadas à língua portuguesa e aos povos indígenas. Porém, o país ainda patina e precisa ter como foco produzir tecnologias e teorias de IA, por mais que já tenha um sistema de pós-graduação robusto e potencial para atrair estudantes.
“O governo precisa estabelecer uma direção clara sobre para onde queremos ir. Quais serão os investimentos necessários para alcançarmos, não o nível de competitividade das grandes nações como Estados Unidos, China e alguns países da Europa, mas para fazermos aproximações nesse sentido? Ainda não estamos lá, não estamos nos preparando o suficiente. No entanto, existem fatores positivos que podem ajudar nessa direção”, disse. Silvio Meira, ao trazer a discussão para o campo educacional, também alertou que, dentro de oito anos, estudantes que saírem do ensino fundamental terão diante de si um mundo muito diferente devido à inteligência artificial. Por isso, é imperativo considerar a preparação social e educacional para esse futuro, o que inclui a oferta de programas de educação midiática para o desenvolvimento de pensamento crítico e, consequentemente, a capacitação da sociedade para tomar decisões informadas. Sua lista de perguntas envolveria:
- Como é que a gente aprende?
- Como cria oportunidade de aprendizado e desenha possíveis futuros?
- Como analisar sistemas complexos e criar esses próprios sistemas?
Respostas a essas questões evitariam a repetição de erros recentes. “Não acho que era óbvio que teríamos algo como o ChatGPT há 20 anos, mas há dez anos já era claro que teríamos algo extremamente parecido. O que fizemos, em termos de educação, mesmo nas universidades e nas áreas de tecnologia da informação, para preparar as pessoas para um debate crítico sobre o assunto?”, indagou. O novo contexto, defende Silvio, demanda que o desenvolvimento desse tipo de tecnologia seja acompanhado de uma reflexão crítica, levando em consideração seus impactos políticos, econômicos e sociais.
Aplicação de inteligência artificial em sala de aula
Para que a educação se beneficie efetivamente da incorporação da inteligência artificial, o professor Silvio Meira sugere que seja desenhado um processo de experimentação. “Primeiro, precisamos entender como os professores podem usar a IA para melhorar e transformar o trabalho fora da sala de aula”, disse. Apesar de ser uma decisão que encontra apoio entre educadores e gestores escolares, o veto ao uso de celular durante o período de aulas foi criticado por ele, dada a necessidade de desenvolvimento de habilidades digitais. “Nós proibimos smartphones nas salas de aula, mas isso é como ter proibido livros em 1520. Precisamos integrar essas tecnologias na educação”, criticou.
A sala de aula é um lugar onde o professor copia o livro no quadro e exige que os alunos repitam o livro na prova, inclusive. Eu já vi isso na pós-graduação, onde a resposta deve ser dada exatamente como foi apresentada em sala
Silvio Meira, cofundador e cientista-chefe da empresa de tecnologia TDS Company
“A gente, até hoje, não entendeu o que fazer com ferramentas de conexão, comunicação, representação e expressão digital, sem nenhuma inteligência artificial no processo educacional. Em boa parte, não entendemos porque nos recusamos estruturalmente a fazer isso. [Costumamos dizer] Isso aqui não pertence à sala de aula. A sala de aula é um lugar onde o professor copia o livro no quadro e exige que os alunos repitam o livro na prova, inclusive. Eu já vi isso na pós-graduação, onde a resposta deve ser dada exatamente como foi apresentada em sala”, comparou. Na UFMG, o professor Virgílio mencionou que muitos de seus colegas estão preocupados com o uso de ferramentas como o ChatGPT nos cursos de computação. “Se dão um trabalho prático, o GPT produz inclusive o código de computador necessário”, disse.
E como avaliar se o estudante aprendeu ou não? Virgílio conta que foram discutidas regras, como por exemplo, deve ser especificado no programa de cada disciplina quais são os recursos que podem ser utilizados, como o aluno deve documentar e justificar por que usou tal recurso de IA para o trabalho. O mesmo procedimento foi feito para atividades de pesquisa, uma vez que as ferramentas também podem gerar, manipular e tirar conclusões a partir de dados. Mas, se os professores não forem treinados para entender o que são as tecnologias de inteligência artificial, isso não vai funcionar. Apesar de serem bem aceitas pela reitoria, Virgílio diz que, se os professores não forem formados para entender o que são e como funcionam as ferramentas de inteligência artificial, todo o processo ficará prejudicado.
Por: Porvir