Regras do MEC para o EAD impedem de estudar quem mais precisa

Publicado por Sinepe/PR em

Estigmatizar o EAD não parece ser um bom caminho para democratizar com qualidade o acesso ao ensino superior

Assim como milhares de jovens brasileiros, a paraibana Dayana Cristiny Silva também encontrou na pedagogia, na modalidade de educação a distância (EAD), um caminho de vida. Mãe aos 17 anos, decidiu buscar formação acadêmica quando já era uma profissional de tecnologia educacional. “Trabalhar, dar conta de duas filhas, casa, trabalho… se eu tivesse feito uma faculdade presencial já teria ido a óbito”, brinca. Mesmo assim, diz, foi puxado. “Não foi fácil, reprovei em três disciplinas e seus estágios”, lembra, para provar a rigidez do curso, na Universidade Mackenzie, em São Paulo. Dayana é coautora do livro Tecnologia e Educação: do virtual para o real, lançado este mês pela editora BOC.

Opção como a que fez Dayana não será mais possível em um futuro próximo. As novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior de Profissional do Magistério da Educação Escolar Básica, homologada pelo Ministério da Educação (MEC) em 27 de maio, estabelece, entre outras mudanças, um mínimo de 50% da carga horária de forma presencial. “Não vejo o novo formato proposto como viável para mim e muitos colegas. Essa mudança representaria uma dificuldade para os que não têm flexibilidade em seus horários ou que residem em áreas distantes”, acredita a pedagoga.

Em dois parágrafos, o depoimento de Dayana ilustra uma – apenas mais uma – das muitas encruzilhadas vividas por quem quer estudar em um país de dimensões continentais, com boa parte de sua população com baixa renda, poucas vagas nas universidades públicas e uma expansão desordenada das faculdades privadas.

É verdade, ninguém diria em sã consciência que a formação de professores no Brasil é um problema resolvido. Se fosse, o quadro geral seria outro — já que a modalidade 100% virtual é relativamente recente no país. Seja no presencial, seja no online, acumulam-se críticas, baseadas em pesquisas, sobre os programas de ensino, o currículo, a qualidade dos cursos, a precariedade dos estágios. Há uma reconhecida precarização da formação de professores no Brasil, e não é de hoje.

Por isso, o coro favorável a uma intervenção do MEC na expansão na formação inicial dos professores na modalidade EAD era ouvido em alto e bom som – a começar do próprio ministro da Educação, Camilo Santana, que antecipou sua intenção de limitar a oferta ainda em outubro do ano passado. Nessa oportunidade, foram divulgados os dados do Censo do Ensino Superior, comprovando uma tendência que se aprofundou nos últimos anos – hoje, 64% das matrículas em cursos de licenciatura acontecem via EAD.

Mas, o que pode parecer óbvio — a formação de professores ganha, se for presencial — é apenas a ponta do iceberg de uma discussão que o país precisa fazer com urgência. Como democratizar com qualidade o acesso ao ensino superior, inclusive na formação de professores? Estigmatizar o ensino a distância, já marcado por preconceitos, não parece ser um bom caminho.

“Discute-se muito a qualidade do EAD, mas todo mundo ficou quietinho para falar do presencial. O EAD entra como vilão de um problema que temos há tempos”, indigna-se Simone Telles, doutora em linguística, que dirigiu a área de educação a distância das Fatecs e da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), duas conceituadas experiências de educação digital. “O problema não está na modalidade, mas nas práticas de ensino das licenciaturas no Brasil, excessivamente teóricas e desconectadas da realidade, inclusive no modo presencial”, lembra.

Recredenciada pelo MEC três dias antes da homologação das novas Diretrizes e com 63 mil alunos, a Univesp é uma das instituições que serão afetadas com os limites de carga horária a distância. “Avaliar o EAD como sinônimo de baixa qualidade pode sim prejudicar iniciativas como a nossa”, contesta a atual chefe de gabinete da instituição, Lubienska Ribeiro. Para ela, a associação reta e direta expressa pelas novas Diretrizes entre a modalidade de ensino a distância e a baixa qualidade das licenciaturas é uma visão equivocada. “Podem existir cursos de baixa qualidade tanto nesta modalidade como na presencial”, lembra.

Perfil dos alunos

Mas o impacto em instituições públicas e privadas com cursos em EAD não é o principal efeito a ser considerado em políticas de governo. O país precisa olhar para as pessoas atrás dos números. Gente como Thamiris Alves de Alecrim, que desde o ano passado faz pedagogia na Universidade Estácio, e ficou apavorada com a notícia que leu nos jornais. “Fui pega de surpresa, achei que, quando entrasse em vigor, iria mudar completamente meus planos. Sou mãe de duas crianças, e esta foi a forma que encontrei para ter uma garantia de futuro tanto para mim quanto para elas. Moramos só nós três, e nunca cogitei estudar presencialmente”, lembra.

A nova diretriz não afeta os alunos já matriculados, e quanto a isso Thamiris pode ficar tranquila. Mas muita gente não poderá mais estudar. “O correto seria arrumar normas mais rígidas para a certificação e avaliação dos cursos”, diz a estudante. “Tirar o EAD depois de tanto tempo é como cancelar o Pix hoje”, exemplifica.

A questão é que há milhares, talvez milhões, de Thamiris espalhadas pelo Brasil, que não passam nem na calçada de uma faculdade, simplesmente porque elas não existem em suas localidades. Dois terços dos municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes. Perto de 3 mil deles não possuem instituições de ensino superior.

No caso do EAD, há um dado crucial a ser levado em conta: o perfil dos alunos. Citando dados do Inep, a pesquisadora Betina von Staa, diretora de ética e qualidade da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed), o público dos cursos a distância, em geral, é formado por pessoas mais velhas, populações vulnerabilizadas e mulheres que já estão no mercado de trabalho. “A modalidade também oferece amplo atendimento a pessoas com deficiência, e acaba sendo um recurso importante de inclusão”, lembra.

Tanto é que no perfil do Instagram do jornal Folha de S.Paulo, no anúncio sobre o MEC ter suspendido a criação de novos cursos de graduação EAD, uma usuária comentou em 11 de junho: “Meus deus… eu como muitos autistas, tenho dificuldade de sair de casa, pegar transporte público, ter que interagir com pessoas todos os dias. Quando a minha faculdade teve que seguir em EAD o meu rendimento cresceu muito. Bem triste isso” (sic).

No caso específico das licenciaturas, são pessoas que antes não poderiam ingressar no ensino superior pela falta de recursos ou por já estarem no mercado de trabalho, com famílias estabelecidas. “Essas pessoas antes davam aulas sem formação específica e passaram a dar aulas com a formação requerida”, exemplifica Betina. “O ensino superior a distância é a única modalidade que chega a todos os municípios do Brasil”, finaliza.

Qualidade

Dizer que muita gente só estuda porque existe EAD é daqueles consensos que não produzem mudanças. Sempre, no final do argumento, está a descrença no potencial pedagógico do EAD. É contra esse preconceito que o pesquisador Luiz Cláudio Costa, reitor do Iesb, ex-reitor da UFV, que também já foi presidente do Inep e hoje é membro do conselho do Pisa, vinculado à OC-DE, vem se batendo.

“Não é uma exclusividade brasileira: o EAD cresce em todo o mundo, não há outro caminho, especialmente agora com a inteligência artificial”, diz. Costa cita como exemplo os Estados Unidos, em que, segundo o National Center for Educational Statistics, havia 10,1 milhões de alunos matriculados em cursos a distância nas faculdades, em 2022. Estados Unidos, Índia e México são líderes globais no número de estudantes em cursos EAD.

“A discussão precisa ser outra: qualidade e inclusão”, defende o pesquisador. Para Luiz Cláudio Costa, o Brasil tem maturidade para levar essa discussão adiante, mas não leva. “Temos excelentes cursos em educação a distância no país. A falta de qualidade não é um problema inerente nem exclusivo dessa modalidade”, lembra.

Mas, então, onde é o problema? Costa responde: bom EAD custa dinheiro. É preciso investimento em plataformas, professores e tutores muito qualificados, acompanhamento individual, bons materiais. “Quando começam a minimizar o custo, aí surgem os problemas”, lembra o pesquisador. Em outras palavras, grandes grupos educacionais que, para melhorar seus balanços, deprimem os preços e rebaixam a qualidade continuam prestando um desserviço ao país e aos futuros professores.

Por isso, o equilíbrio que permite o acesso ao ensino superior deve também envolver critérios orçamentários e programas de auxílio estudantil, já que elevar mensalidades não é a solução. Além de criar mecanismos eficientes de controle da qualidade de ensino – outro tema que surge e some do noticiário, de tempos em tempos.

Medir qualidade do EAD não é fácil, inclusive porque não se pode aplicar a mesma régua do presencial. A publicação das novas regras desanimou um grupo instituído pelo próprio Ministério da Educação para discutir sobre modelos de avaliação em EAD, da qual fazia parte Simone Telles. “A base de dados gerados é gigante. Com a tecnologia, podem-se elencar determinados indicadores para monitorar, e isso não é feito”, conta Simone. Segundo ela, mesmo no cadastramento dos alunos no sistema digital do MEC, os formulários são condizentes com os alunos dos cursos presenciais, mas não com os de cursos a distância.

Assim, a avaliação continua sendo um calcanhar de aquiles do sistema. Para Betina, da Abed, conforme o critério de qualidade existente hoje, se o aluno se forma com indicadores 3, 4 ou 5 no Enade, o curso demonstrou legalmente a qualidade mínima esperada pelo governo.

Segundo a Abed, em 2022, 63 cursos da modalidade a distância tiveram nota 5, no Enade. As licenciaturas, que foram avaliadas em 2021, têm 14 cursos com nota 5. “Todos estes cursos precisarão se adequar à norma, independentemente da qualidade comprovada”, lamenta Betina. Nesse contexto, seria mais adequada a ação do governo para melhorar ou fechar cursos mal avaliados, independentemente da modalidade, diz a gestora.

Por isso, na visão de Betina, as novas Diretrizes deveriam deixar mais claro o perfil do egresso que desejam formar em qualquer modalidade e as avaliações oficiais se encarregariam da qualidade. “Mas negar o acesso à educação aos alunos de todo o país que têm buscado uma licenciatura por vontade própria, muitas vezes pagando por ela do próprio bolso, é que não faz sentido nenhum”, reitera.

As diretrizes estabeleceram um prazo de dois anos para a adequação das ofertas de licenciaturas em EAD. Até lá, espera-se um debate sobre o tema. “Teremos dois anos para ajustes, e a expectativa é que surjam caminhos e incentivos para atender o público que hoje procura o EAD”, diz o educador Lourival José Martins Filho, diretor de formação docente e valorização dos profissionais da educação, vinculado ao MEC. “O único ponto inegociável é o estágio supervisionado presencial”, garante. Se assim for, esta é uma boa oportunidade para que o país discuta com mais profundidade sobre como construir com qualidade um sistema de formação para seus professores, sem ampliar a exclusão que caracteriza a história da educação brasileira.

Por: Revista Ensino Superior