Coisas que nunca reparamos até que o ódio exploda
Converso com professores de todo lugar e tenho uma história a contar dessas conversas: grande parte dos professores acredita saber reconhecer as “vítimas” preferenciais do bullying.
Alguns depoimentos: “Quando começa o ano, fico na porta recebendo as crianças e, só de olhar, já sei quem vai ter problema e quem vai dar problema”.
“Já pego os fraquinhos e ponho mais perto de mim e digo pra eles: qualquer coisa, fala comigo, tá?”
“Eu converso com os pais e já vou alertando sobre os filhos deles. Se os pais não preparam os filhos para a escola, eu sozinha é que não vou conseguir dar conta!”
Bom, há muitas variações sobre o mesmo tema. Há uma pré ocupação com certos tipos de alunos e alunas: os magrinhos, baixinhos, tímidos, com alguma deficiência física ou mental, gordos, com manchas ou cicatrizes aparentes, etc. Não é difícil imaginar outros exemplos de candidatos às brincadeiras, achincalhes, discriminações, agressões físicas e morais, isolamento, humilhações e exposição a todo tipo de ridículo, durante a aula e ao longo dos intermináveis recreios.
Interessante é que muitas dessas preocupações acabam enfatizando essas diferenças já no início do ano.
“Olha aí turma, não é porque o colega é gordinho que eu quero ver aqui qualquer tipo de brincadeira com ele, está certo?”
“Atenção, atenção, a amiga de vocês tem uma dificuldade de acompanhar a aula porque ela teve um probleminha na infância. Quero todo mundo ajudando e colaborando com ela, ok? E nada de gracinhas!”
Boa parte dessas expressões preocupadas são detalhadas pelos pais. Conheci um que chegou a combinar com a professora um complexo sistema de sinais para que ela entendesse as necessidades da filha, tão tímida que não conseguia falar durante a aula. Assim, se ela coçava a orelha é porque desejava ir ao banheiro; se apertasse o nariz, queria tirar uma dúvida; se pegasse no cabelo, é porque alguém a estava incomodando.
As crianças e adolescentes, de maneira geral, são observadores e perspicazes. Não há convite mais irresistível que essas chamadas de atenção dos adultos.
Lembro da mãe que assistia ao desfile de 7 de setembro da minha escola e gritava, histérica: “João Ricardo! João Ricardo! Olha! É a mamãe!” Todos olhavam, menos o coitado do João Ricardo que queria que um fosso se abrisse sob seus pés para sumir e escapar das inevitáveis brincadeiras dos colegas.
Ou da outra mãe que interrompeu uma aula, preocupada, com uma lancheira de cor salmão nas mãos: “Desculpe, professor, quero só entregar o “lanchinho” para o Vítor, que esqueceu”. E dirigindo-se para o filho: “Vitinho, não se preocupe mais, mamãe trouxe o lanche”.
Vítor era aluno do nono ano.
Não há pais mal-intencionados. Não há como imaginá-los conspirando antes de expor os filhos a situações dessa natureza. Mas exemplos como esses são comuns, muito comuns.
Alguns professores são muito jovens. Ou consideram-se jovens. Ou precisam, precisam muito, parecer jovens. E estabelecem padrões de relacionamento com seus alunos que inclui aceitar ser chamado por apelidos e atribuir apelidos aos alunos.
Isso acontece com muitos pais também. De alguma maneira, consideram essa postura uma forma de identidade com os filhos. São “amigos”, brincam como amigos, trocam insultos, “mas tudo numa boa”.
Isso acontece com irmãos e irmãs mais velhas. Parentes. Amigos dos pais. Todos consideram que os apelidos familiares podem atravessar a fronteira da intimidade do lar e ganhar o mundo. É só brincadeira, sem maldade.
Não conheço professores que se comportem assim com a intenção malévola de prejudicar ninguém. Pelo contrário, acreditam que agindo assim, facilitam o aprendizado e tornam a vida dos alunos e alunas na escola menos chata, mais interessante.
Todos querem ajudar. Ou apenas fazer uma brincadeira. Ou não querem nada em especial.
Agora pergunto: quais são as ações, gestos ou palavras que proferimos envolvendo alguém e não reparamos? Ou mesmo reparando, não medimos suas consequências? Ou mesmo medindo as consequências, não imaginamos se a vítima vai concordar ou não com elas? E fazemos tudo isso com pessoas que gostamos ou contra as quais não alimentamos qualquer oposição.
Perguntas como essa exigem reflexão. Reflexão é uma palavra muito rica. E também poderosa. Significa “voltar-se sobre a minha ação”. Ou seja, um revisitar de coisas que faço sem que tenha pensado antes de fazer isso.
Professores, pais, parentes, amigos, quase nenhum deles acredita ser responsável por parte importante das práticas de bullying que assolam o país. Mas são. Somos.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
Por: Universidade Positivo