Inteligência artificial já faz parte do cotidiano dos alunos. Por que não utilizá-la em aula?
Se não pode com eles, junte-se a eles? Como a inserção de inteligência artificial nas aulas pode facilitar processos e estimular as habilidades leitoras dos estudantes
Ainda existem aqueles que resistem ao uso da tecnologia no ambiente escolar. Alguns cuidados no uso das tecnologias são necessários, contudo, impedir que elas entrem e façam parte das aulas é algo praticamente impossível. A bola da vez é a inteligência artificial, tida como nova queridinha (ou o medo) de muitos professores e escolas.
Patricia Didone, professora de inglês no Colégio São Francisco Xavier, em São Paulo (SP), conta que não escolheu de início trabalhar com inteligência artificial. O fato é que a IA – como é conhecida a tecnologia – foi quem apareceu “sem convite” às suas aulas.
O colégio onde Patricia trabalha é bilíngue – português e inglês – e, por isso, ela explica que o foco das aulas não é unicamente ensinar as operações básicas dos idiomas, mas sim dar contexto e mostrar como as línguas funcionam na prática. Para essas aulas, ela utiliza de textos literários para nutrir nos estudantes habilidades como pensamento crítico e capacidade analítica.
Uma das inteligências artificiais mais famosas é o ChatGPT, que tem sido usada em diversas áreas e situações. Foi ele quem “apareceu” no dia a dia de Patricia. “Eu não escolhi colocá-lo em minhas aulas, mas comecei a perceber que ele já estava sendo usado [pelos alunos]”, conta.
À época, a docente estava trabalhando contos em língua inglesa e, a depender da atividade que os alunos precisavam fazer em casa, ela identificou que vinham análises muito detalhadas das situações que em aula os eles não conseguiam reproduzir. Ao perceber que esta ferramenta já estava no cotidiano da turma, Patricia então resolveu oficializar o uso.
Primeiro, já em sala de aula, ela solicitou que os estudantes pedissem à plataforma o envio de uma sinopse do conto que estavam lendo: a IA respondia com um descritivo. Em seguida, ela pedia uma verificação para que a turma tivesse certeza de que o resultado enviado pela máquina era ou não plausível.
“Usar o texto sugerido pelo ChatGPT e comparar com o texto que estávamos lendo foi a primeira coisa que fizemos e que sentimos que deu certo. Os alunos perceberam que nem toda resposta é correta e que às vezes, reformulando a pergunta, o resultado oferecido pela inteligência artificial muda completamente”, explica Patricia.
A formação leitora pode se aproveitar bastante de situações como essa. O uso de inteligência artificial para o desenvolvimento leitor já está presente em diversas propostas e planos de aula, assim como em plataformas de incentivo à leitura. Para Carolina Pavanelli, diretora do time pedagógico de Árvore, a IA possibilita a individualização do aprendizado e permite que o desenvolvimento das habilidades leitoras dos estudantes seja acompanhado com mais precisão.
“Sabemos que cada pessoa aprende de uma forma e em um ritmo diferente. Sem essa tecnologia, o trabalho do professor acaba sendo muito maior, pois ele precisa criar rubricas, traçar metas e acompanhamento de cada aluno. Muitas vezes isso é inviável em uma realidade em que um professor tem várias turmas e dezenas de alunos”, comenta Carolina.
“Assim, a inteligência artificial consegue, a partir de comandos dados pedagogicamente e de um currículo bem formatado, captar características, fazer diagnósticos, medir o engajamento e o desenvolvimento e até mesmo recomendar leituras mais apropriadas e direcionadas para cada habilidade que está sendo trabalhada”, diz.
Ou seja, os usos podem ser desde bem práticos, como o caso de Patricia, até os que são feitos a longo prazo, como propõe Carolina.
Todo mundo gosta?
Apesar do crescimento e do aumento da fama – alavancado pelo ChatGPT – o uso de inteligência artificial em sala de aula ainda não é um consenso. Assim como abordado nas atividades apresentadas por Patricia, Carolina explica que um dos motivos pela divergência é devido aos limites que ainda existem nesse tipo de tecnologia.
“O primeiro deles está no fato de que não é possível esperar respostas 100% corretas para os comandos fornecidos. Como ferramenta geradora, o GPT trabalha no campo da estatística e probabilidade, e as respostas vão variar de acordo com a qualidade dos conteúdos usados como base. Além disso, existem os limites éticos, relacionados principalmente à autoria de textos”, destaca.
“Falamos muito sobre a ideia de letramento digital, que passa justamente por educar as novas gerações no uso desses artefatos que podem, sim, contribuir muito quando bem usados”, Carolina Pavanelli, Árvore.
Nesse sentido, e por ser um campo ainda a ser explorado, a mediação dessas ferramentas torna-se muito necessária. A professora Patricia, por exemplo, vivenciou essa situação e posteriormente conseguiu usar a ferramenta junto aos alunos, mediando o processo e modificando os resultados obtidos na aula. “Falamos muito sobre a ideia de letramento digital, que passa justamente por educar as novas gerações no uso desses artefatos que podem, sim, contribuir muito quando bem usados”, diz Carolina.
“Não adianta eu proibir o uso. O que devemos fazer é mostrar o que a ferramenta consegue ou não fazer e apresentar a importância do senso crítico em cima da inteligência artificial e que ela, por si só, não se basta”, define Patricia.
Para além da escola
E na esteira dos que aprovam e dos que não aprovam o uso de inteligência artificial na sala de aula, existem também algumas famílias que veem com receio a aplicação dessas ferramentas em um contexto pedagógico.
Essa é a experiência vivida por Liduína Gomes, coordenadora pedagógica do Colégio Luciano Feijão, de Sobral (CE). “Por incrível que pareça, ainda há famílias que resistem e apontam a questão de querer diminuir o tempo de tela [dos alunos]”, destaca Liduína. Em casos assim, foram necessárias muitas conversas para mostrar o quanto a própria BNCC (Base Nacional Comum Curricular) prevê o desenvolvimento de competências digitais. “O digital é um caminho sem volta e as crianças precisam desenvolver autonomia para se autogerir nesse meio digital”, acredita.
Um outro argumento de Liduína é que o uso de tela, no caso da escola, tem uma intenção pedagógica e não se trata de um simples uso das tecnologias digitais. Uma das plataformas utilizadas pelos estudantes da escola é a Árvore, que, por meio de uma ferramenta de inteligência artificial, apresenta em relatórios uma série de dados sobre o avanço da leitura, quantidade de livros lidos e propostas gamificadas que facilitam o desenvolvimento leitor dos usuários.
E não são só as famílias…
Liduína aponta que há ainda (e também) por parte do corpo docente uma certa resistência ao uso de determinadas ferramentas. “O desafio às vezes é o do professor desbravar a ferramenta”, comenta.
“Um argumento que tem força para uma virada de chave dos educadores mais resistentes é a possibilidade de facilitar a rotina de trabalho. Na verdade, sempre houve receio da inserção de tecnologias, e agora com a inteligência artificial, não está sendo diferente”, diz Carolina. Ela ressalta que com os comandos certos, por exemplo, o ChatGPT pode auxiliar os professores a inovarem de forma mais ágil em suas aulas.
Como exemplos de formas de usar a inteligência artificial, Carolina sugere a elaboração de planos de aula, tradução e revisão de textos, produção de jogos ou disparadores de criatividade.
“O professor que começa a aderir a inteligência artificial em sua rotina de trabalho passa a ter mais conhecimento, propriedade e segurança para mediar a relação dos estudantes com a ferramenta e promover o seu uso responsável”, afirma Carolina.
Patricia também destaca que o correto não é resistir ao uso dessas ferramentas. Isso porque, segundo ela, se tiverem oportunidade – seja em sala de aula, seja em casa – os estudantes vão acessar esses recursos a seu favor. “Na minha escola, por exemplo, isso é uma certeza. O maior problema, então, é [o professor] fingir que essas coisas não existem. O importante é pontuar quais as limitações e fomentar o senso crítico do aluno”, diz.
Pontos de vista
A professora Liduína aponta que já não é mais possível encarar as tecnologias digitais como vilãs. Para a docente, é preciso aproveitá-las da melhor forma possível, entendendo as potencialidades e no que é preciso educar a turma para usá-la corretamente.
Usar ou não inteligência artificial em sala de aula é uma questão de tempo e perspectiva. Mesmo que não seja um consenso no campo da educação, a inserção ficará, a cada dia, mais difícil de ser ignorada.
Em certo sentido, as escolas que não se voltarem para esse uso sairão de certa forma perdendo algo, comenta Carolina.. “Não estou dizendo que é preciso ignorar as consequências ou que não devemos questionar se o uso está sendo efetivo. Estou dizendo que, assim como em muitos outros exemplos que envolvem a evolução da tecnologia, a escola que insiste em lutar contra ela sai perdendo porque deixa de tentar descobrir seus benefícios e lidar com ela da melhor forma. ” Ela aponta as orientações da BNCC que mostram como a escola deve se comprometer com a educação integral dos estudantes.”E se a tendência é que a IA esteja cada vez mais presente na vida cotidiana, não utilizá-la significa não criar oportunidades de debater e educar sobre seu uso, por exemplo”, afirma.
As escolas que não se inclinam a olhar para a inteligência artificial podem deixar escapar uma oportunidade de investir em letramento digital, por exemplo. Tal letramento é importante, também, para identificar os benefícios e o que pode ser prejudicial nesses sistemas de inteligência artificial.
Fechar-se para essas questões não resolve os problemas das escolas, concordam as entrevistadas. Crianças e adolescentes precisam ter um domínio da internet e das plataformas não apenas para o entretenimento, mas para uso consciente e ético. Por isso, a escola não pode se ausentar desse direcionamento.
Por: Por Vir