Crise climática eleva importância da biologia marinha
Graduação ainda não tem uma presença marcante no universo das IES privadas
O surgimento de plástico no estômago das baleias e de outros animais marinhos deveria despertar a população humana para um problema que envolve a sua própria espécie. O alerta é feito pelo cineasta Ali Tabrizi na abertura do documentário Seaspiracy: Mar Vermelho, da Netflix. “Quando golfinhos e baleias vão à superfície respirar, eles fertilizam pequenas plantas marinhas no oceano chamadas fitoplânctons, que absorvem quatro vezes mais a quantidade de dióxido de carbono do que a Floresta Amazônica e geram até 85% do oxigênio que respiramos. Se os golfinhos e baleias morrem, o oceano morre. E, se o oceano morrer, nós também morremos”, adverte.
Diante da crise climática, a saúde dos mares requer ainda mais atenção, fato que eleva a importância das carreiras relacionadas ao mundo subaquático. É o caso da biologia marinha, que hoje não conta com uma presença marcante no universo das instituições de ensino superior particulares e que, segundo especialistas, deve ganhar cada vez mais força.
Entre as IES que oferecem o curso, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) conta com um olhar especial para os oceanos. Como destaca Rodrigo Leão de Moura, professor do departamento de biologia marinha e pesquisador do Núcleo Rogério Valle de Produção Sustentável da COPPE (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia), a instituição promove uma disciplina colegiada, que fornece o primeiro contato entre o oceano e estudantes que vão direcionar sua formação para genética, botânica, zoologia e ecologia. “Esses estudantes tendem a ter pouco conhecimento sobre o oceano, e essa é uma lacuna que tentamos diminuir”, explica.
Moura também ressalta a busca pelo fortalecimento de temas ligados ao oceano no programa de pós-graduação em ecologia, tradicionalmente mais voltado para questões de ecossistema terrestres e de água doce. “Há um número considerável de dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre o oceano, defendidas e em andamento”, diz.
O curso de biologia marinha também é ofertado pela Universidade Santa Cecília (Unisanta) desde 1986 e atrai para a cidade de Santos estudantes de todo o país. Com duração de 8 semestres, apresenta enfoque nas disciplinas básicas do curso de graduação em ciências biológicas até o sexto semestre. Já no sétimo e oitavo semestres, são oferecidas disciplinas específicas da área. É o que conta Jorge Luís dos Santos, coordenador do curso de ciências biológicas.
Segundo o profissional, a oferta de vagas formais na área de biologia marinha ainda está em expansão no Brasil e isso se deve ao baixo investimento em pesquisa, inovação e empreendedorismo na área das ciências marinhas em geral. “Entretanto, tenho notado uma mudança nesse quadro com iniciativas que ampliam a cada ano as ofertas de empregos que tendem a melhorar em médio prazo”, opina.
Questionado sobre os desafios de se ofertar biologia marinha em uma instituição privada, Santos fala sobre o estabelecimento de uma ponte entre a formação dos egressos e o mercado de trabalho. Por isso a importância de trabalhar a mentalidade empreendedora para o biólogo marinho.
“Conseguimos desenvolver estágios em diferentes áreas que são preparatórias para os futuros profissionais ingressarem no mercado, sobretudo nas consultorias ambientais. Os alunos podem fazer estágios de monitoria com bolsa de incentivo no herbário científico, no acervo zoológico e no laboratório de ecotoxicologia da Unisanta. Na instituição privada, conseguimos desenvolver estas competências e habilidades aos futuros biólogos marinhos com muita intensidade dentro dos períodos de aula teórica e prática sem que haja a necessidade de ser um aluno em regime de tempo integral. Assim, o aluno consegue, durante o curso, ser também um trabalhador, estagiário ou trainee em meio período, o que garante vantagem para sua entrada definitiva no mercado.”
Alexander Turra é professor do Instituto Oceanográfico da USP e coordenador da cátedra Unesco para a sustentabilidade do oceano. No instituto, atua de forma diversificada. “Uma das minhas frentes de atuação envolve aproximar o oceano da sociedade e a ciência das políticas públicas. Isso requer uma abordagem transdisciplinar e muito diálogo com diferentes atores sociais para ressignificar a ciência dentro das demandas sociais”, descreve. Turra busca trazer a biologia marinha para dentro de um contexto mais amplo, o socioecológico. “Nós temos tanto o ambiente natural como o ambiente social. Esses ambientes interagem um com o outro e essa interação é importante para que possamos compreender os efeitos que as atividades humanas têm sobre a biodiversidade e de que forma podemos efetivamente protegê-la.” Em sua atual linha de trabalho, o profissional aborda temas como conservação e impacto ambiental marinho, governança, gestão de praias arenosas e lixo marinho.
O profissional em biologia marinha entende o funcionamento de todo o ambiente marinho. Para Turra, tal propriedade é essencial em um contexto de emergência climática. “No ecossistema há fluxos de matéria e de energia, há processos que ocorrem e que, pautados na biodiversidade marinha, trazem benefícios para a humanidade. As mudanças climáticas atuarão fortemente nos ecossistemas, afetando a biodiversidade e alterando os benefícios que o ambiente marinho traz para as pessoas. É fundamental que o biólogo ou a bióloga marinha compreenda esse sistema e como as mudanças climáticas vão afetá-lo. Esses profissionais também terão de pensar quais são os caminhos para solucionar esses problemas.”
O caminho do oceano
Moura reforça a importância do oceano para a sobrevivência humana, uma vez que equilibra as condições físico-químicas da biosfera. “Além disso, o gelo regula a circulação oceânica profunda e o nível do mar, uma questão-chave considerando que quase metade da humanidade vive em zonas costeiras. A geração de energia descarbonizada é promissora e pode ser feita com aproveitamento dos ventos fortes e constantes de diversas regiões costeiras e marinhas, sem falar na energia das ondas e das marés. Alimentos advindos do mar também podem ter seu papel aumentado nas próximas décadas. No entanto, toda essa promessa pode não se concretizar se não nos atentarmos para a vida marinha e para a necessidade de industrialização marinha sem geração de mais poluição”, alerta.
“Olhar para o oceano é, sem dúvida, uma ferramenta para analisar a saúde do planeta”, corrobora Pedro Volkmer de Castilho, biólogo e docente na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). O profissional enfatiza que o oceano é a principal estrutura do planeta e também a que menos conhecemos. “Precisamos de mais gente olhando para ele, estar mais vigilantes e ter informações básicas com mais credibilidade para que possamos ser ouvidos. Por serem algo mais palpável e que as pessoas conseguem ver, tocar e sentir, as florestas têm um apelo maior, logo são assimiladas com mais facilidade. O oceano é naturalmente mais difícil. As pessoas gostam, veem e admiram, mas a percepção delas é de praia e não necessariamente o oceano como um todo. O nosso dever de casa é aumentar esse processo de divulgação, porque é uma área que precisa de mais dedicação”, justifica.
Moura salienta que não se trata de um “passe de mágica” a ser resolvido com discursos em painéis internacionais e compromissos em prazos a perder de vista. “Ainda estamos longe de uma estratégia robusta para atravessar essa crise. Assim, sublinho: os investimentos em ciências do mar nunca foram tão necessários.”
O mercado dos mares
Castilho foi parte do grupo de professores que propôs um curso de ciências biológicas para a UDESC. “A nossa ideia era a criação de um curso que tivesse adesão local, estamos localizados na região litorânea de Laguna, um lugar geograficamente importante. Não queríamos engessar o curso, assim optamos pela oferta de dois: o curso de biologia marinha e o de biodiversidade e conservação, ambos vinculados às ciências biológicas.” O profissional indica que a pouca oferta de cursos de graduação faz com que a habilitação em biologia marinha seja cada vez mais procurada. Na UDESC, os discentes de biodiversidade e conservação podem cursar disciplinas de biologia marinha e vice-versa.
Na avaliação do biólogo, hoje há uma demanda “exponencial” de assuntos voltados para o mar. “O Brasil resolveu que a sua expansão será marítima. Tem muito campo para profissionais e está faltando gente no mercado”, comenta. Ele atribui diferentes razões para essa realidade. “Tem gente que tem capacidade e não quer embarcar, e gente que quer embarcar mas não tem capacidade. Com isso, não se encontram profissionais para algumas vagas”, exemplifica. Jorge Luís dos Santos comenta que o mercado tem se mostrado muito seletivo, exigindo uma elevada especialização. “Num universo em que há muitos biólogos formados, temos de buscar uma diferenciação para o biólogo marinho, oferecendo as melhores condições de formação científica ao aluno para que muitos sigam também para a carreira acadêmica se assim desejarem.”
Alexander Turra argumenta que o principal problema não é falta de cursos, mas sim de oportunidades para se ter uma formação complementar durante a graduação, por meio de disciplinas ou de cursos extracurriculares que possam ser dados de forma abrangente. “O Instituto Ocenográfico tem um curso de introdução a oceanografia, que não é de biologia marinha ou de oceanografia biológica, mas que traz elementos abrangentes e que beneficiam alunos de graduação dos diferentes cursos de biologia do Brasil, além de outros interessados. É curioso pensar de que forma podemos ampliar a oferta da abordagem marinha nos cursos de ciências biológicas”, pondera.
A biologia do futuro
Nos últimos anos, o ensino superior tem passado por uma verdadeira transformação tecnológica. No universo marinho o avanço não é diferente. Pedro Volkmer de Castilho conta que tem atuado diretamente com inteligência artificial (IA). “Entre as biologias, a marinha precisa dessa inovação tecnológica. Não tem como colocar uma pessoa para mergulhar a 500 metros de profundidade, precisamos de inovação, de criatividade e de equipamentos capazes de chegar aonde um ser humano não pode. A biologia marinha tem uma área basal, mas também uma área de inovação tecnológica que permite coisas incrivelmente interessantes. Nas embarcações oceanográficas, por exemplo, há o uso de robôs que coletam amostras, realizam mergulhos profundos de forma segura e ainda conseguem gravá-los. Quem tem esse viés da inovação tecnológica está muito à frente e sempre terá um destaque profissional, porque trazer atividades que facilitem o trabalho de pessoas, evitando alguns riscos, é o que fará diferença”, defende.
Por: Revista Ensino Superior