Atividades sobre povos indígenas: chega de cocar de papel e guache no rosto
Entenda quais práticas não devem ser realizadas e conheça atividades que podem combater estereótipos
No Brasil, os indígenas são 1,69 milhão e estão presentes em quase 87% das cidades – a grande maioria (63,27%) vivendo fora de terras indígenas, segundo o Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar de constituírem os povos originários do nosso país e estarem em quase todo o território nacional, o desconhecimento e o preconceito em relação às suas histórias e culturas ainda persistem. Muitos professores e livros didáticos ainda reduzem a diversidade dos povos indígenas brasileiros a visões estereotipadas, equivocadas e mesmo racistas, colaborando para o apagamento histórico e a desvalorização dos saberes tradicionais.
São muitos os exemplos de práticas e abordagens que devem ser abolidas das escolas, principalmente durante o mês de abril, como pintura do rosto das crianças, a designação das vestimentas indígenas como fantasias e a mitificação da figura do indígena como um ser exótico, romântico ou do passado. Elas precisam dar lugar a iniciativas que valorizem as culturas e os saberes originários e de professores indígenas para que a Lei 11.645, de 2008, que prevê a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas do país, seja efetiva.
Generalização e desconhecimento na origem do preconceito
Do grupo étnico Mebengokré, Edson Kayapó, historiador e professor doutor em Educação do Instituto Federal da Bahia (IFBA) e de Ensino em Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), lembra que o racismo começa com a generalização. “Não somos todos índios. Os estudantes têm que compreender a diversidade sociolinguística e cosmológica dos povos indígenas”, diz.
Para o professor, o próprio fato de abril, em especial, ser um mês dedicado à temática indígena deveria ser motivo de questionamento. “Os povos indígenas têm que estar nos currículos transversalmente, no dia a dia da escola”, defende.
Ainda que o “Dia do Índio” (19 de abril), criado em 1943 por meio de um decreto do governo de Getúlio Vargas, tenha dado lugar ao Dia dos Povos Indígenas no esforço de abranger a diversidade indígena, ainda há muito a ser feito. “A data foi criada no auge de um governo autoritário. Não é um dia de comemoração, mas de reflexão sobre todo o processo de violência que sofremos”, opina Edson.
Cláudio Vera, da etnia Guarani Mbya, que trabalhou por dez anos como professor da rede pública lecionando Língua Materna e Cultura Étnica nas Terras Indígenas Tenondé e Krukutu, em São Paulo, recorda da sua experiência enquanto estudante indígena em uma escola regular de Peruíbe (SP). “Me chamavam de cara pálida, cara vermelha. Quando tinha o ‘Dia do Índio’, nos pintavam e colocavam adereços. Só depois, quando fui estudar na aldeia, nossos mestres me orientaram sobre como aquilo tudo era ofensivo”, conta o professor, que hoje conduz formações em temáticas indígenas para docentes.
Para ele, a falta de informação é a raiz dos preconceitos. “Quando falamos em guarani, por exemplo, as pessoas nos olham e perguntam se somos do Paraguai. O povo guarani é uma das maiores populações indígenas do continente sul-americano, mas a imagem de um indígena remete a alguém da Amazônia”, observa.
Formação gera transformação
Se muitos dos equívocos ao abordar os povos indígenas na escola vêm do desconhecimento de suas culturas, histórias e vivências por parte dos professores, a formação docente inicial e continuada se coloca como um caminho fundamental para mudar esse cenário.
Para Edson, os cursos de licenciatura não dialogam com a Lei 11.645 ou o fazem de forma tímida ou equivocada. “Prevalece um olhar para os indígenas como povos presos ao passado, congelados no tempo. Somos povos contemporâneos – segundo o último Censo do IBGE, estamos presentes em todos os estados brasileiros”, destaca.
O professor comenta que é comum ouvir a queixa de docentes não-indígenas de que não conseguem abordar a temática porque não receberam informação para isso. “Eles perguntam como vão ensinar algo que não aprenderam. Então, as licenciaturas precisam se reestruturar, e isso não significa criar simplesmente uma disciplina ‘História e cultura dos povos indígenas’ ou colocar um intelectual não-indígena para falar sobre nós. É preciso dar espaço para intelectuais, lideranças e sábios indígenas protagonizarem [o relato de] suas histórias”.
Na opinião de Tomé Kambeba, professor de Ciências na Escola Indígena Municipal Kanata T-Ykua (AM), apesar do currículo da Educação indígena ser diferente do regular e ter suas próprias diretrizes, é preciso que ambas [Educação indígena e regular] troquem e aprendam uma com a outra. “Nosso currículo é diferente, nos estruturamos por ciclos, não por séries, por exemplo. No entanto, tem que haver uma consonância entre essas abordagens. Precisamos de mais formação e interação entre esses educadores [indígenas e não-indígenas]”, sugere.
No que diz respeito à formação continuada, Edson acredita que a iniciativa de aprofundamento no tema e a mobilização de recursos financeiros devem partir das Secretarias de Educação, assim como a revisão dos livros didáticos utilizados pela rede. “Estou em Porto Seguro (BA) e têm editoras que tratam dos povos aqui do Nordeste com imagens de indígenas do Xingu (PA)”, lamenta ele, que também atua com a formação continuada de professores.
Fortalecimento das culturas e identidades indígenas
Mas o que os professores podem fazer para abordar a temática indígena de forma adequada e transversal na escola? Para Tomé, a escola é, por excelência, o local onde a diversidade deveria se encontrar. Por isso, ela deve promover a valorização da cultura, do modo de viver e da identidade cultural dos diferentes povos indígenas.
“Temos um sistema no qual o currículo é pensado de cima para baixo. Não é pensado, por exemplo, a partir das nossas comunidades, respeitando a interculturalidade”, critica. “Mas quando falamos em pertencimento, temos que fazer a afirmação de quem nós somos, defender nossos direitos”, acrescenta.
Edson endossa essa opinião e diz que abordar a temática indígena é mais do que uma necessidade, é uma reparação histórica e algo com o qual o mundo tem muito a aprender. “Nós, povos indígenas, estamos chamando a atenção para a questão climática faz muito tempo, alertando sobre a necessidade de pensar alternativas para esse projeto de progresso problemático.”
Ele aponta também como é inadequado tratar da temática indígena como se fosse um assunto isolado e sugere uma abordagem transversal. “A questão ambiental e os povos indígenas estão interligados e transitam por qualquer área do conhecimento.”
Por: Nova Escola