Mais médicos ou mais advogados?

Publicado por Sinepe/PR em

Judicialização e incertezas para abertura de vagas e monitoramento da qualidade criam área inchada e má distribuição do atendimento

“Estamos sem disponibilidade de agenda.” “Neste momento não conseguiremos atender.” “Devido à agenda de nossos executivos, infelizmente, teremos que declinar de nossa participação nessa matéria.” Assim, eximindo-se de comentar a querela que tem marcado as tentativas de criação de novos cursos de medicina ou a ampliação do número de vagas já existentes, algumas instituições reagiram aos pedidos de entrevista da reportagem. O próprio Ministério da Educação (MEC) preferiu também passar apenas comunicados por escrito com sua posição oficial, excluindo a possibilidade de entrevista. O imbróglio é temperado por diferentes decisões judiciais para casos similares, dependendo de onde as ações foram impetradas.

Em 22 de dezembro do ano passado, a Seres (Secretaria de Regulação e Supervisão do Ensino Superior) editou a portaria 531/2023, que dispunha sobre “o padrão decisório para o processamento de pedidos de autorização de novos cursos de Medicina e de aumento de vagas em cursos de Medicina já existentes, instaurados por força de decisão judicial, nos termos determinados pela Medida Cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade 81/DF”. Ou seja, a portaria foi ancorada em decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), que estabelecia que deveriam ser seguidos os critérios estabelecidos pela Lei do Mais Médicos (12.871/2013).

A judicialização dos pedidos de abertura de cursos teve início logo após a moratória estabelecida ainda em 2018 na gestão de Mendonça Filho (governo Michel Temer) à frente do MEC, quando a concessão de autorização para novos cursos e vagas foi interrompida por cinco anos. Mas os casos aumentaram no ano passado, com o vencimento de seu prazo.

Segundo a lei do Mais Médicos, os critérios preliminares para a análise da abertura ou não de novos cursos e vagas são a relevância e necessidade social da oferta e “a existência, nas redes de saúde do SUS, de equipamentos públicos adequados e suficientes”, o que inclui, no mínimo, os serviços de atenção básica, urgência e emergência, atenção psicossocial, ambulatório especializado e hospitalar e vigilância em saúde.

De acordo com o MEC, em resposta enviada por e-mail, o primeiro critério (necessidade social) tem como base os dados da região de saúde em que se insere o município, “utilizando como parâmetro as 116 regiões de saúde pré-selecionadas no Edital n.º 1, de 2023, que detêm concentração de médicos por mil habitantes inferior à média nacional”. No total, o SUS contabiliza 438 regiões da saúde.

Há também uma “regra complementar que avalia a necessidade social no município, utilizando como critério a concentração de médicos por mil habitantes, mas adotando como parâmetro a média da OCDE”.

Em setembro de 2023, os países da OC-DE tinham média de 3,7 médicos por mil habitantes, enquanto o Brasil ostentava 2,7 por mil habitantes (segundo dados da Demografia Médica no Brasil, levantamento da Fundação FMUSP e Associação Médica Brasileira).

Chamadas anteriores

Para aumentar os desencontros, antes da edição da portaria 531 da Seres, o ministro Camilo Santana, da Educação, havia anunciado, no início de outubro de 2023 a autorização para abertura de 95 novos cursos de medicina, com 5.700 vagas em 1.719 municípios, visando atingir a meta de 3,3 médicos por mil habitantes em dez anos. Quando desse anúncio, o governo trabalhava com o número de 2,5 médicos por mil habitantes.

Em 30 de abril deste ano foi lançado novo edital (5/2024), um chamamento público para habilitação de instituição superior cuja mantenedora tivesse unidade hospitalar para autorização de funcionamento de curso de graduação em medicina.

Em meio a esses novos chamamentos e editais, o MEC vem lidando com vários pedidos que foram judicializados nos últimos anos, principalmente a partir de 2022. Até 18 de setembro de 2024, foram analisados 73 pedidos relativos a esses processos. Destes, 35 foram deferidos e outros 38 indeferidos.

Muitos dos indeferidos, porém, ainda podem ser revertidos. Alguns, inclusive, já obtiveram resposta judicial positiva. É o caso da Fundação de Ensino e Pesquisa do Sul de Minas Fepesmig, cujo pedido havia sido indeferido segundo a Portaria 435, de 29 de agosto de 2024, da Seres, e teve definida tutela provisória de urgência pelo juiz da 1ª Vara da Justiça Federal de Varginha (MG). O MEC tem prazo de 90 dias para apresentar a reanálise do processo.

Segundo Felipe Flausino de Oliveira, reitor, a Fepesmig tem 58 anos de existência, faz parte do Grupo Unis e é uma entidade sem fins lucrativos. “Desde a criação da entidade já havia o desejo de ter um curso de medicina. O corpo docente já está constituído, todos são mestres ou doutores. Se a portaria do MEC com a autorização sair hoje, amanhã já poderemos dar aulas”, diz Oliveira. A instituição não acredita que a medida da Justiça seja derrubada e espera que o curso seja oficializado até dezembro próximo.

Varginha tem 120 mil habitantes e é a cidade-polo da Região de Saúde do SUS que congrega outros municípios, entre eles Elói Mendes, Cordislândia, Monsenhor Paulo e São Gonçalo, totalizando cerca de 1 milhão de habitantes, segundo o reitor. É a única cidade-polo da região Sul de Minas que ainda não tem curso de medicina.

A Unis investiu R$ 6 milhões para receber o curso, comprando simuladores, salas tecnológicas e estruturas especiais, já tendo sido visitada pelo MEC e recebido nota máxima. Já estão acertados convênios com 30 hospitais da região, a maioria voltada para atenção básica, urgência e emergência, atendimento psicossocial, saúde da família e comunidade. Mas há também convênio com hospital de referência em tratamento oncológico e tratamentos cardíacos e de traumas.

Já o Centro Universitário Eufrásio de Toledo, de Presidente Prudente (SP), não teve a mesma sorte. A IES tentou obter autorização da Seres em 2019, alegando que os pedidos que ocorrem fora dos chamamentos públicos não precisariam seguir as regras do Mais Mé-dicos. O pedido foi negado.

Enquanto isso, o plano institucional era desenvolver a área de saúde como um todo, até então inexistente. O curso de fisioterapia foi aberto em 2020, o de psicologia em 2022 e terapia ocupacional em 2024. “Nossa infraestrutura foi redesenhada para se adequar a esses cursos”, diz Clarice Yoshioka, coordenadora de Regulação e Avaliação.

Em 2020, a UniToledo tentou reverter a decisão da Seres junto ao Conselho Nacional de Educação. Pedido indeferido, o mesmo acontecendo quando impetrou ação junto à 8ª Vara da Justiça Federal, em Brasília. “As decisões variam de acordo com a Vara Federal a que se recorre”, avalia Yoshioka. Agora, ela espera o resultado do recurso que impetrou para que a sentença seja revista.

Questionado sobre casos excepcionais como o de Varginha e outros similares, o MEC reafirmou, por meio da assessoria, os critérios mencionados anteriormente e os objetivos da Lei do Mais Médicos.

“O MEC, na qualidade de órgão responsável pela implementação da política pública, detém a prerrogativa de definir o critério técnico para análise de necessidade social, o que foi cumprido.” E a nota acrescenta: “A adoção de outros critérios decididos pontualmente em casos singulares tem como consequência a desestruturação da política pública e o esvaziamento dos seus objetivos. Por isso, o MEC vem trabalhando com a finalidade de preservar as regras por ele adotadas, fortalecendo os objetivos do programa, reconhecido como constitucional pelo Supremo Tribunal Federal”.

Xadrez às escuras

Com o imbróglio ainda em curso e muitos processos sub judice, a estratégia do silêncio e dos trabalhos de bastidor, prudência normalmente recomendada por advogados, faz com que até mesmo instituições que já operam há tempos e são reconhecidas pela excelência, como a Faculdade Einstein, prefiram abster-se de fazer análise pública sobre a situação. A questão envolve interesses diversos. Por um lado, as IES que pleiteiam a abertura de novos cursos, sendo que medicina tem um tíquete bastante elevado, mas normalmente compensador. Por outro, há a preocupação de um excesso de médicos, falta de controle adequado na formação e um processo de avaliação que está longe do rigor necessário.

Instituições como o Conselho Federal de Medicina tentam criar parâmetros aos cursos, com a introdução de um processo de acreditação nos moldes do já existente para os hospitais, porém com foco nos processos de ensino. Já entidades do campo educacional veem com desconfiança a intrusão na seara educacional. Outros consideram a certificação insuficiente, pois, sendo voluntária, não abrange todas as instituições.

O fato é que a oferta de cursos de medicina, assim como a de médicos, cresceu substancialmente. De 2003 a 2018 foram criados 178 novos cursos no país, com crescimento mais expressivo após a publicação da Lei do Mais Médicos, em 2013, quando o governo, após detectar a carência de profissionais em áreas remotas e de difícil acesso, em que não se conseguia responder às necessidades de atenção primária, lançou o programa. Apesar de vários outros pontos, o que mais chamou atenção foi a contratação, por meio de um convênio com o governo cubano, de médicos daquele país com o propósito de chegar aos rincões pouco escolhidos por médicos brasileiros.

Em paralelo, de 2013 a 2017, também como resultado da lei, o número de vagas para as escolas de medicina, segundo informações do MEC à época, subiu de 19 mil para 31 mil. Em 2018, o número de médicos registrados nos conselhos de medicina era de 454 mil, segundo o CFM.

Expansão ultraveloz

Para quem acompanha a evolução da oferta de serviços médicos e de cursos de medicina há tempos, o que ocorre no Brasil é algo sem precedentes. É o caso de Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP na área de Política, Planejamento e Gestão e coordenador da publicação Demografia Médica no Brasil 2023, realizada pela FMUSP, Fundação FM e Associação Médica Brasileira.

“Trata-se de um fenômeno recente, dos últimos dez anos. Nenhum país passou por uma expansão tão rápida, com uma abertura massiva de cursos e judicialização desse processo”, diz Scheffer. Ele acompanha tanto a evolução da formação quanto da profissionalização há 14 anos. Em sua visão, o problema não foi a abertura que começou a ocorrer em 2003, mas a falta de um planejamento claro e definido e de um processo avaliativo que garantisse a qualidade.

“Houve um apagão da avaliação dessa abertura. Temos um universo de 390 escolas muito distintas, com situações muito heterogêneas. Isso exigiria um modelo de avaliação complexo para aferir a qualidade da formação”, avalia.

Nos últimos dez anos, diz ele, 90% das novas vagas são privadas e estão fora dos grandes centros. O temor maior é de oligopolização promovida por grandes grupos. “Estão vendo a medicina como a galinha dos ovos de ouro”, avalia o professor da USP.

O processo de oligopolização, de resto, já acontece em toda a área de saúde, seja na concentração de hospitais (há redes com mais de 70 unidades Brasil afora), exames laboratoriais e farmácias. Sem falar no que ocorre em outros setores da economia, seja no Brasil ou no mundo. Até fenômenos da cultura popular, como o futebol, estão passando por esse processo.

Um milhão nos próximos 10 anos

Segundo as projeções de Scheffer, feitas com base no número atual de médicos e de vagas para formação de novos profissionais, em dez anos o Brasil terá um milhão de médicos. “Precisamos urgentemente de um planejamento para isso, saber qual o perfil de médicos que queremos formar, qual o papel dos generalistas.” Além disso, acrescenta, a avaliação deve ser atualizada. Para isso, o primeiro passo é uma revisão das diretrizes curriculares, que este ano completam dez anos, e a criação de indicadores mínimos para o exercício da profissão. E, para que haja uma visão clara do sistema como um todo, também é preciso ter uma avaliação posterior à formação, saber onde estão e para onde vão os novos médicos.

Uma das principais intenções da abertura de vagas fora dos grandes centros – a fixação dos médicos em suas regiões de origem, ou no caso daqueles que saíram dos grandes centros para cursar medicina – não está provocando os resultados esperados. É o que indicam estudos preliminares do grupo coordenado por Scheffer.

“Ainda não conseguimos determinar com precisão se a opção por abrir escolas no interior garante a fixação nesses locais. Estudos preliminares dizem que não. Muitos que vão para estudar nesses locais se formam e voltam a sua cidade de origem”, finaliza.

Outra preocupação, esta dos responsáveis pela residência médica, é um descompasso muito grande entre o número médio de formados por ano, hoje na casa dos 45 mil, para apenas 16 mil vagas para as especializações. Já há um contingente de 220 mil médicos que não contam com especialização, indo direto para a atenção primária ou atendimento em prontos-socorros. A opção de muitos deles é cursar uma pós-graduação lato sensu, que tem uma oferta de quase 2 mil cursos, 40% deles em EAD, com qualidade variável.

Mas, por melhores que sejam, a legislação não permite que quem os cursou se apresente como especialista. A questão preocupa a todos. Raquel Carmona, gerente da Assessoria Jurídica e Educacional do Semesp, também defende que haja algum meio de controle. “O Semesp defende que tenhamos liberdade permanente para a abertura de cursos, mas amparada numa avaliação bastante rigorosa da qualidade para que só restem os cursos de excelência.”

Enquanto todas essas variáveis se somam, a disputa aumenta, o preço das faculdades abaixa (o que, nesse caso, pode ser sinônimo de ensino mais precário), excedentes e carências convivem. Na ponta, o paciente espera uma solução. Ao menos enquanto está vivo.

Por: Revista Ensino Superior