O Sisu e a escolha pela centralização
No momento em que a Reforma Curricular do Ensino Médio impõe mudanças no modelo do ENEM, os problemas operacionais em torno do SISU tornam oportuno que se aprofundem algumas reflexões. O atual processo seletivo para as instituições oficiais de ensino superior completa dez anos. Vigora desde 2010, quando foi instituído com o objetivo de racionalizar o acesso às vagas.
Durante a vigência do modelo anterior, de vestibulares isolados, as principais Instituições de Ensino Superior (I.E.S.) restringiam os seus processos seletivos a critérios que, em geral, focavam exclusivamente a identificação do mérito acadêmico. Os vestibulares tradicionais eram geralmente compostos por duas fases, uma genérica e a segunda dita “específica”, cujos sentidos eram selecionar os candidatos mais aptos e estabelecer padrões de excelência acadêmica dos cursos de graduação desde o ciclo básico. De fato, ao focar exclusivamente no suposto mérito acadêmico dos candidatos de origens tão diversas e ao lhes atribuir uma igualdade de condições e equidade sem respaldo algum na realidade, as Universidades oficiais podem ter protelado o reconhecimento da responsabilidade social que lhes caberia, em se considerando a realidade brasileira.
Em 2010 o intuito era assegurar que todas as Universidades oficiais adotassem processos que considerassem a função social dessas instituições públicas: ações afirmativas, políticas de cotas, mobilidade regional e eliminação da ociosidade de vagas. Tratava-se de processo seletivo que envolvia não apenas o acesso a determinadas vagas, mas também e sobretudo ao financiamento dos estudos em nível superior, segmento em que o investimento público era notoriamente mal focalizado. A política de cotas teve o mérito de promover o ingresso de segmentos sociais até então sub representados nas graduações e nas pós. As evidências da pertinência e da eficácia dessa medida são hoje inquestionáveis.
Ao lado disso, outro caminho para se equacionar a focalização do gasto público teria sido também a revisão da cláusula constitucional que impede a cobrança de anuidades em estabelecimentos oficiais, mesmo em se tratando de alunos que possam pagar. (Não faltam exemplos bem-sucedidos pelo mundo afora, mas ao que tudo indica, entre nós as condições políticas para esse debate jamais se apresentaram).
No Brasil preferimos contornar o impasse através da concentração de todo o processo seletivo nas mãos do Estado. Daí surgiram o Novo ENEM e o SISU, articulados em estratégia que levou as Universidades Federais de todo o país a renunciarem ao controle do seu processo de ingresso e da definição do perfil do candidato a ser admitido em cada uma das diferentes graduações. Ao cederem e transferirem essas atribuições para o MEC/INEP as I.E.S. brasileiras abriram mão de uma importante prerrogativa, definidora da identidade institucional de qualquer estabelecimento de ensino.
A solução pela centralização é, ao que tudo indica, ser mais uma “jabuticaba”, que dificilmente encontrará correspondência em outra democracia do Ocidente. O tema remete ao questionamento sobre que papel e usos cada país escolhe atribuir aos seus sistemas de avaliação em larga escala. Sendo a alternância no poder a regra em democracias, é pouco prudente que processo como esse seja transferido para o governante de plantão. (Vide a suspeição de “tendenciosidades” que passou a pairar sobre o banco de itens).
O caminho escolhido em 2010 distorceu o ENEM e o fez degenerar em um gigantesco vestibular unificado em nível nacional, que engessa e padroniza currículos a que estão submetidos todos os estudantes brasileiros. É notório o quanto efeitos sobre o Ensino Médio são deletérios. Por isso a Reforma curricular é inadiável e a flexibilização dos exames de ingresso é incontornável.
Salta aos olhos que a origem das fragilidades operacionais do SISU está na centralização excessiva e no gigantismo do exame e da empreitada. As próprias Universidades são plenamente capazes de conceberem, cada uma delas, processos seletivos que conciliem mérito acadêmico e a função social que lhes cabe como instituições públicas. Não seria mais sábio se lhes fosse devolvido, ao menos em parte, algum controle sobre o processo? Quem melhor do que elas para discernirem os critérios e as condições para ingresso nos cursos que oferecem? Não seria oportuno que se cogitasse rever a opção feita em 2010 pela excessiva centralização nas mãos do MEC?
Fonte: Pedro Flexa Ribeiro – diretor do Sindicato dos Estabelecimentos de Educação Básica do Município do Rio de Janeiro e da Federação Nacional das Escolas Particulares – via Estadão
Data: 10/02/2020