Elegemos o ensino como a mais dispensável de todas as nossas atividades
Não há mais como sustentar tecnicamente a manutenção das escolas fechadas
Há décadas os debates políticos encontram raro consenso no discurso sobre a necessidade de desenvolvermos um sistema de educação de qualidade. Ainda que historicamente a prática não confirme, ao menos o discurso nos iludia sobre um suposto reconhecimento da sociedade e da classe política de que melhores condições sociais dependem de educação.
Seis meses após o início da pandemia do novo coronavírus, no entanto, as escolas continuam com portas fechadas e alunos afastados, embora, de acordo com o Plano SP de retomada consciente das atividades, a maioria dos setores já tem permissão para funcionar, inclusive bares e restaurantes, academias e salões de beleza.
Na prática, elegemos o ensino como a mais dispensável de todas as nossas atividades. Se historicamente o discurso ainda tratava de nos iludir, hoje nem mesmo ele ensaia alguma defesa da educação pelo futuro.
Os argumentos usados pelo prefeito Bruno Covas defendendo a manutenção das escolas fechadas são sanitários. Segundo Covas, a volta às aulas seria arriscada, pois um inquérito sorológico demonstrou que “apenas” 20% dos alunos já foram infectados.
Em estudo recente, pesquisadores da Universidade de Oxford, em colaboração com brasileiros do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, estimaram que a imunidade coletiva ao novo coronavírus possa ser atingida com cerca de 20% de infectados. Ou seja, é possível que já haja alto nível de imunidade coletiva nos alunos da rede municipal, reduzindo a transmissão.
Outro argumento usado por Covas é que 70% das infecções dos alunos da rede municipal foram assintomáticas e não seriam, portanto, detectadas por medidas de controle de entrada, como checagem de temperatura.
De fato, um estudo recente publicado na Nature Medicine demonstrou que 71% das infecções em crianças até nove anos são assintomáticas. O que Covas omite, talvez por ignorar, é que em outros grupos da população a proporção de infecções assintomáticas é muito próxima e, ainda assim, esses grupos já retomaram ao menos parcialmente suas atividades.
O mesmo estudo relatou que nos adultos, 73% das infecções em pessoas entre 20 e 29 anos são assintomáticas; 67% em pessoas entre 30 e 39 anos; 60% em pessoas entre 40 e 49 anos; e até 51% naqueles entre 50 e 59 anos.
Enquanto 7 milhões de pessoas com idade entre 20 e 59 anos da cidade de São Paulo (dados da Fundação Seade) já circulam pela cidade, cerca de 2,5 milhões de alunos matriculados no ensino básico (dados do IBGE) estão impedidos de frequentar as escolas.
Outro dado importante nessa conta é que pessoas até 19 anos são duas vezes mais resistentes à infecção do que pessoas com idade acima de 20 anos. Ou seja, matematicamente a abertura de bares, restaurantes, academias, shoppings centers e salões de beleza “libera” a circulação de um número maior de assintomáticos, e ainda de pessoas mais suscetíveis à infecção, do que a abertura das escolas.
O discurso contra a abertura das escolas pelo zelo sanitário não é apenas contraditório com a abertura de outras atividades, como também é tecnicamente discutível. Pesquisadores do London SchoolofHygiene& Tropical Medicine concluíram em trabalho recente que o fechamento das escolas contribui pouco para o controle do novo coronavírus, assim como já havia sido relatado pela análise de dados do surto de Sars (outro coronavírus) no início do século.
Não deveria haver, portanto, discordância entre o argumento sanitário e o social (aqueles apresentados por Denis Mizne, da Fundação Lemann, em entrevista à Folha). Não há mais como sustentar tecnicamente a manutenção das escolas fechadas.
As decisões a respeito da abertura das escolas têm ignorado os estudos científicos mais recentes. A educação básica deveria ter tido prioridade no plano de reabertura, como ocorreu em diversos outros países nos quais frequentemente nos espelhamos. A prefeitura precisa esclarecer quais dados estão embasando sua decisão de manter as escolas fechadas, prejudicando toda uma geração de crianças.
No início de 2020, antes de sermos assolados pela pandemia, foram divulgados os primeiros resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Paulista (Idep), que mede o desempenho dos alunos em matemática, língua portuguesa e ciências. A maior parte das escolas de ensino fundamental da rede municipal de São Paulo ficou abaixo da meta, revelando desempenho insatisfatório dos alunos.
Resultados como esse deveriam ensejar alguma intensificação dos esforços pela melhoria do sistema de educação municipal, no discurso e na prática.
Daniel Youssef Bargieri é professor e pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP; Roberto R. Moraes Barros é professor e pesquisador da Escola Paulista de Medicina (Unifesp).
Por Folha de S. Paulo