‘Com escolas fechadas, maior perda é nas relações entre as crianças’, diz psicanalista
Maria Cristina Kupfer afirma que déficits educacionais, no entanto, não são irremediáveis
O comprometimento das relações chamadas horizontais, entre as de crianças, representa a perda mais relevante com o fechamento das escolas.
Essa é a avaliação da psicanalista Maria Cristina Kupfer, professora titular sênior da USP. “A criança ensina a outra, ajuda a enfrentar questões. É o que aprendo sobre mim quando olho para o amigo, vejo as diferenças”, diz ela, autoridade na relação entre psicanálise e educação.
“É tão educativo quanto o que acontece na aula e o que se aprende leva para vida: como se relacionar com o semelhante no espaço público”. Cristina, 68, avalia que essa perda têm efeito até maior do que o gap de aprendizagem, que, pontua ela, tem maiores complicações para a população mais pobre.
Educação, convivência e tolerância estão entremeadas em seu novo livro, “Arthur: um autista no século XIX, com posfácio sobre o autismo no século XXI” (Ed. Escuta). Trata-se de um uma visão psicanalítica sobre o autismo de forma romanceada.
A psicanálise trabalha com perdas, a angústia das ausências. Na educação, o que se perdeu no período? É irremediável?
Há perdas de diversas ordens. Mas as especialmente importantes são das relações horizontais, entre pares, de crianças com crianças, no espaço público da escola. Essa convivência é estruturante do ponto de vista subjetivo. Tem a dimensão da cidadania, em que ela aprende desde cedo a lidar, e a dimensão subjetiva. Mas não são perdas irremediáveis, não se comparam a traumas de guerra, ou desnutrição infantil.
O fechamento de escolas e quarentena causam impactos emocionais nas crianças?
Uma coisa é uma criança que se angustia diante de determinada interpretação, de acontecimentos traumáticos. É uma experiência infantil, que decorre da construção que ela faz singularmente. Outra coisa é o que acontece com todos, como a pandemia. É como um avião que sacode. O que fazemos? Olhamos para a comissária. Se ela estiver assustada, nos assustamos.
As crianças veem o mundo sacudindo e o que fazem? Olham para os pais. Se estiverem bem, ficarão bem. Não há uma relação direta de causalidade entre pandemia e transtorno mentais, depressão, angústia. Se aparecem transtornos é porque estavam ali, já havia algo em potencial. Falam em traumas porque a criança não vê seus amigos… A ausência de um amigo é triste, mas temos de aprender a lidar com a tristeza.
No posfácio do livro, a senhora escreve “que uma criança faz mais pela outra do que um adulto”. Por que não basta um parquinho para isso?
A criança ensina a outra, ajuda a enfrentar questões. É o que aprendo sobre mim quando olho para o amigo, vejo as diferenças. A escola é importante porque ali tem um professor mediando, consciente. Isso faz a diferença. Às vezes sem saber, a escola gerencia essas relações quando vai mediar conflitos, bullying. É tão educativo quanto o que acontece na aula e o que se aprende leva para vida: como se relacionar com o semelhante no espaço público.
A escola tem função muito maior do que se imagina. A classe é heterogênea e crianças que crescem com isso têm menor tendência a grupos homogêneos e, portanto, menos autoritários e intolerantes. A raiz da intolerância está nos grupos homogêneos.
E em termos de aprendizado formal?
A sociedade e os pais estão preocupados com a perda de uma quantidade de conteúdos, mas isso é recuperável. A dimensão conteudista é, hoje, pequena perto do que as crianças aprendem na escola. Falo de um modo geral. Em relação às classes desfavorecidas, o problema é outro. Porque já estão em desvantagem e ficaram sem nada de escola esse tempo porque não tinham internet. O poder público tem que se virar para recuperar.
Haverá uma mudança na percepção social sobre a escola?
Houve uma valorização da escola mais pela falta que ela fez. Pode ajudar a desnaturalizar a escola, mas é preciso que isso seja mais discutido. Se perguntarmos aos pais o que fez falta, vão dizer que era importante porque o filho aprendia. Mas o que mais? Durante a pandemia não se frequentou o espaço público da escola, parou de aprender cidadania, ética, o aprendizado da vida coletiva.
Como é a conexão entre a noção de sujeito da psicanálise, individual, com o coletivo do ambiente escolar?
Na escola, por meio das relações horizontais, constrói-se o aluno que virá a ser o cidadão-sujeito. Aqui está a relação entre o individual e o coletivo. O cidadão-sujeito é duas faces de uma moeda. De um lado, uma criança que aprende a conviver nos espaços públicos, e quem senão a escola ensina essa convivência orientada por uma ética? O cidadão está sendo moldado quando as crianças aprendem a jogar futebol de forma coletiva, quando chutam o amigo e têm de pedir desculpas mediados pelo professor. Mas não basta ser cidadão. A outra face é o sujeito, categoria mais propriamente psicanalítica, que se aproxima da ideia de subjetividade. O Sujeito é o que está por trás dos atos humanos, sendo que às vezes está em contradição: querer não é desejar.
A escola está cuidando do cidadão-sujeito quando consegue uma articulação do desejo com a lei. Por exemplo, quando dá uma redação sobre um tema mas reconhece uma produção como própria dela e a valoriza.
Mas essa articulação de desejo com lei é impossível, daí Freud fala de um mal-estar na civilização. Isso não é contornável, meu desejo é maior que a lei, a convivência não será harmônica. Sempre haverá mal-estar. Por isso o remédio tem sua face ruim, quer eliminar a angústia não erradicável. O que devemos fazer é não desejar a harmonia, mas ajudar a enfrentar o mal-estar, que é parte estruturante.
A escola é um instrumento para lidar com o mal-estar?
Ela é feita para isso, para suportar o mal-estar. Isso é a essência do trabalho da psicanálise na educação. Não é eliminá-lo. Aliás, toda a civilização não é para outra coisa senão suportar o mal-estar. Escrevemos literatura para isso, para enfrentar coisas difíceis.
Por que a sra. foi para o século 19 falar sobre autismo e escola?
Todo recuo no tempo ajuda a relativizar e enxergar melhor nosso tempo. Se você pensa como era a escola antes, consegue depurar o essencial, que sempre esteve lá. Ajuda a entender melhor a escola de hoje. Ao me projetar nas escola do século 19 é porque ali havia o ideal educativo. Quando a escola quer educar pode integrar o diferente, ser tolerante, e, ainda que nem se falasse de autismo, pode incluir. Embora meu personagem tenha sofrido os efeitos da intolerância, que está arraigada na sociedade.
Em que medida a escola é um lugar privilegiado para infância?
O lugar social da infância é a escola, que faz parte da moldura da infância. Ser criança é ir para escola, é um lugar de identificação. Criança que não vai para escola, como um autista, está fora desse mundo social. A identidade da criança está profundamente articulada ao lugar escolar.
O governo Bolsonaro defende o homeschooling, o que ganhou atenção na pandemia. Qual avaliação?
O homeschooling é a negação mais radical da infância, da participação da criança no espaço público. É uma volta para o espaço familiar inaceitável. A família não pode dar tudo que uma criança precisa. O homeschooling ajuda mais a entender o valor da escola do que a pandemia. É a negação de todas conquistas em termos civilizatórios nos últimos 300 anos. Isso sim é perda irremediável.
Com a pandemia, houve uma convivência forçada entre crianças e pais. Dá para ser otimista com o resultado disso?
Sou muito otimista. Falamos das perdas, mas os ganhos ficam para sempre. Só daqui alguns anos essas crianças vão crescer e contar o que aconteceu no tempo em que as escolas pararam. Houve encontros, não só gritaria, houve adaptação, famílias começaram a se refazer nas relações. Ensinaram o que puderam, entraram nas aulas, observaram, deixaram de lado a loucura da vida, de correr pra cá e pra lá. Tenho certeza que viram coisas que não viam antes.
Maria Cristina Kupfer, 68
Psicanalista, é professora titular sênior da USP (Instituto de Psicologia/Faculdade de Educação). É diretora do Lugar de Vida, centro de Educação Terapêutica.
Graduada em psicologia, é mestre e doutora pela USP. É membro fundadora do Laboratório Interunidades de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a infância, da mesma universidade. Estuda e atua com psicologia escolar desde o final dos anos 1970.
Lança em 2020 o livro “Arthur – Um Autista no Século XIX [com posfácio sobre o autismo no século XXI] (Ed. Escuta)”. É autora, entre outras obras, de “Educação para o Futuro – psicanálise e Educação” (Ed. Escuta, 2000).
Por Folha de S. Paulo