Ensino domiciliar, escolas público-privadas, vouchers: prós e contras do modelo americano que seduz governo brasileiro
Como é possível melhorar a qualidade do ensino no Brasil? Esse questionamento permeia o debate sobre as políticas educacionais no Brasil há pelo menos três décadas, quando a Constituição de 1988 definiu a educação como um direito de todos. De lá para cá, o país avançou na inclusão de milhões de crianças e jovens nas escolas, mas não conseguiu garantir que todos aprendam em condições de igualdade.
A novidade é que, agora, os governos Jair Bolsonaro e Eduardo Leite se apegam, cada um a sua maneira, a soluções aplicadas nos Estados Unidos por meio do school choice, um movimento que defende alternativas às escolas públicas. Por lá, a liberdade de escolha na educação está ancorada em pelo menos três ações principais: educação domiciliar (chamada de homeschooling); escolas charter, ou conveniadas (com gestão privada, mas recebendo dinheiro público); e vouchers, em que o governo paga para um aluno estudar na rede privada.
A reportagem de GaúchaZH esteve em Baltimore, nos EUA, no começo de maio, para acompanhar os debates do 71.º Seminário Anual da Education Writers Association, associação que representa os jornalistas de educação no país. No centro da pauta: as discussões sobre a melhoria da aprendizagem dos estudantes e as propostas do governo para se chegar lá.
Para uma plateia de pelo menos 500 jornalistas reunidos na cidade de Baltimore, a secretária de Educação do governo Trump, Betsy DeVos, foi enfática ao afirmar que as escolas públicas fracassaram e que a única resposta é dar alternativas às famílias. Para ela, a liberdade de escolha incentiva a competição entre as instituições de ensino e, com isso, melhora a qualidade da educação.
Não é um discurso novo. Surgiu na década de 1950, a partir das ideias do Nobel de Economia Milton Friedman e tem crescido desde os anos 1990, tanto nos governos republicanos, como o de Trump, quanto nos democratas — Barack Obama é considerado um incentivador das escolas charter. No Brasil, a liberdade de escolha na educação encontra apoiadores desde então, mas não havia se convertido em políticas públicas. Até agora.
Entusiasta das ideias de Friedman, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem defendido desde a campanha eleitoral a política dos vouchers na educação. Assim como DeVos, ele entende que dar dinheiro aos pais para que eles escolham o colégio dos filhos vai incentivar a competição e melhorar, inclusive, as escolas públicas. No entanto, nenhuma proposta foi apresentada pelo governo Bolsonaro nesse sentido. O mesmo não se pode dizer da regulamentação da educação domiciliar, definida como uma das prioridades dos primeiros cem dias de gestão e que resultou em um Projeto de Lei apresentado pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.
Outro pilar do school choice americano, a criação de escolas charter ganha força em ações de governos estaduais e municipais, inclusive no Rio Grande do Sul. É o caso das escolas comunitárias de Porto Alegre — a última delas foi inaugurada em abril, por meio de parceria entre a prefeitura, a ONG Aldeia da Fraternidade e o Instituto Lumiar, que mantém uma rede de escolas privadas no Brasil e no Exterior. Em maio, o governador Eduardo Leite também manifestou interesse no modelo, após receber a visita do empresário Jon Hage, que gerencia 83 escolas charter nos EUA.
Para o professor do Teachers College, da Universidade de Columbia, Jeffrey R. Henig, é preciso cuidado com a proliferação de políticas que prometem uma solução milagrosa para os problemas educacionais, principalmente em países com altos níveis de desigualdades como o Brasil:
— (Nos Estados Unidos) As pesquisas mostram que essas políticas funcionam em alguns casos, mas não garantem melhora geral da qualidade da educação — disse à reportagem, após participar de um debate sobre a escolha escolar no seminário do início de maio.
Defasagem histórica
Entra governo, sai governo, e a promessa é a mesma: colocar a educação no Brasil no patamar dos países desenvolvidos. Pudera, a principal avaliação do desempenho dos estudantes aponta que estamos no fim da fila no nível de aprendizagem dos nossos alunos: 65.º lugar em matemática, 63.º em ciências e 59.º em leitura no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês), prova coordenada pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ODCE) em 70 países (veja no quadro abaixo).
O que pode parecer surpresa para muita gente é que essa discussão sobre a qualidade e a melhoria nos indicadores não ocorre somente em nações subdesenvolvidas como o Brasil, onde o processo de inclusão em massa na educação começou tardiamente – a universalização do Ensino Fundamental só ocorreu no início deste século. Nos EUA, maior economia do mundo — onde o sistema de ensino para todos foi implementado pelo menos cem anos antes —, a tônica do debate educacional é a mesma. Isso porque o país, que se orgulha de ter um PIB de mais de R$ 20 trilhões (três vezes maior que o do Brasil), acumula resultados não muito empolgantes no Pisa, em comparação com outras nações igualmente desenvolvidas: 39.º lugar em matemática, 25.º em ciências e 23.º em leitura.
Um relatório divulgado neste ano pelo Centro Nacional de Estatísticas Educacionais, ligado ao Departamento de Educação dos EUA, demonstra a preocupação do governo norte-americano com os resultados no Pisa. O texto aponta que um terço dos jovens de 15 anos daquele país tem desempenho considerado insuficiente em matemática. Apenas 6% dos estudantes estão nos níveis mais elevados, contra 35% em Singapura, país que lidera o ranking do Pisa. No Brasil, não passa de 1%.
Para a secretária americana, a resposta aos problemas educacionais está em uma mudança no perfil do sistema escolar. Segundo Betsy DeVos, 90% das crianças hoje estudam em escolas públicas no país, mas a maioria dos pais gostaria de um modelo diferente.
Os planos da secretária de Trump para melhorar a educação incluem um investimento de US$ 5 bilhões em um programa de isenções fiscais lançado neste ano para incentivar os americanos a custearem bolsas de estudos de alunos em escolas privadas, uma espécie de programa nacional de vouchers. A proposta, que depende de aval do Congresso, encontra resistência entre democratas e até republicanos, que argumentam uma interferência indevida na atuação dos Estados.
Os números de mais uma edição do Pisa – a prova foi aplicada no ano passado – serão conhecidos no fim deste ano e podem representar um grande teste para as ideias de DeVos, que assumiu o cargo em 2017. Especialistas não demonstram grande otimismo quanto aos resultados. Nem nos EUA, nem no Brasil. Para o economista e pesquisador de políticas educacionais da Universidade da Califórnia (Berkeley) Rucker Johnson, o caminho mais efetivo para garantir o sucesso dos alunos – que, para ele, vai além do resultado em avaliações internacionais — passa pelo investimento nos professores. Política que patina tanto nos EUA quanto no Brasil.
— É a qualidade dos professores o maior recurso que as escolas podem oferecer aos seus alunos – afirmou o pesquisador, em entrevista realizada em Baltimore.
Confira abaixo como três principais iniciativas do school choice americano – ensino domiciliar, escolas conveniadas (charter) e vouchers – influenciam as políticas educacionais do Brasil:
Ensino domiciliar
O que é
Consiste na possibilidade de os pais deixarem de matricular seus filhos na escola e educá-los em casa.
Como funciona nos EUA
O chamado homeschooling é permitido, com regras que variam em cada Estado – que têm autonomia para criar leis próprias. Segundo a Associação de Defesa Legal do Ensino Domiciliar (HSLDA, na sigla em inglês), dos 50 Estados norte-americanos, seis possuem alta regulamentação, ou seja, são exigidas provas regulares para avaliar o aprendizado e a qualificação dos pais para ensinar e até visitas nas residências. Em 19 deles, a regulamentação é considerada moderada e, em 25, há poucas regras, ou nenhuma.
Propostas no Brasil
O governo Bolsonaro apresentou, em abril, Projeto de Lei para regulamentar o ensino domiciliar. A proposta prevê que pais ou responsáveis apresentem plano pedagógico e que estudantes façam avaliações anuais. Um projeto também tramita na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Prós
Defensores afirmam que o modelo garante mais segurança às crianças e aos jovens e que é uma forma de os pais controlarem a qualidade do aprendizado, além de evitar casos de bullying.
Contras
Críticos argumentam que a educação domiciliar limita a socialização das crianças, que seriam privadas da diversidade de pessoas e de ideias, e que favoreceria casos de violência infantil.
Escolas conveniadas (charter)
O que é
Um modelo de escola gerida pela iniciativa privada, que recebe recursos públicos.
Como funciona nos EUA
Instituições privadas recebem recursos do governo para administrar escolas públicas. São responsáveis pela construção da estrutura, pela contratação de professores e funcionários e pela definição do currículo. Os estudantes não pagam mensalidade.
Propostas no Brasil
Há políticas isoladas no país, com algumas semelhanças com o modelo dos EUA. É o caso das escolas conveniadas com a prefeitura de Porto Alegre. São três no Ensino Fundamental. O governo gaúcho também avalia uma proposta de escola charter para a rede estadual, apresentada pelo Instituto Floresta. A ideia é construir um colégio experimental na periferia da Capital, com recursos do fundo de segurança pública.
Prós
Defensores argumentam que a gestão privada reduz a burocracia e permite que o governo descredencie instituições que não atingirem as metas estabelecidas em contrato, o que favoreceria a qualidade.
Contras
Críticos afirmam que o modelo dos EUA favorece a concentração de alunos de classe média em algumas escolas (sem diversidade), que há dificuldade por parte dos governos em controlar a qualidade e que o repasse de verbas para a iniciativa privada retira dinheiro da escola pública.
Vouchers
O que é
Um vale em dinheiro que o governo dá às famílias para que elas escolham em qual escola querem matricular seus filhos.
Como funciona nos EUA
São 15 os Estados que contam com política de vouchers, além de Washington D.C.. Também existem outros programas semelhantes, como o de bolsas de estudo financiadas pelo abatimento de impostos de pessoas e empresas.
Propostas no Brasil
Um dos defensores dos vouchers é o ministro da Economia, Paulo Guedes. No entanto, não existe nenhum projeto do governo federal para instituir a política no país. Alguns especialistas consideram o Programa Universidade para Todos (Prouni), que concede bolsas de estudo para cursos de graduação em universidades privadas, uma espécie de voucher na Educação Superior.
Prós
Apoiadores afirmam que a política garante liberdade aos pais para escolherem se querem que os filhos estudem em escolas públicas ou privadas. A competição entre instituições de ensino também levaria a uma melhoria na qualidade do ensino, segundo preveem os entusiastas da ideia.
Contras
Quem é contrário à ideia argumenta que pesquisas não comprovaram melhoria da qualidade do ensino com os vouchers. Também apontam que o modelo favorece o crescimento de escolas religiosas, em contraponto aos colégios públicos.
Como melhorar a Educação Básica
A reportagem de GaúchaZH perguntou a pesquisadores de universidades americanas e brasileiras sobre os fatores que consideram importantes para a melhoria da qualidade da Educação Básica. Veja as opiniões:
- Professor do Teachers College, da Universidade de Columbia, Jeffrey R. Henig defende que a melhoria da educação passa por mais investimentos, mas não só isso: os recursos precisam ser direcionados para atrair bons estudantes para a carreira do magistério, o que passa por melhores salários e por uma formação qualificada. Sobre as políticas de vouchers, educação domiciliar e escolas charter, ele afirma que existem bons e maus exemplos e que melhores resultados dependem de uma fiscalização mais efetiva do Estado.
- Economista e pesquisador da Universidade da Califórnia (Berkeley), Rucker Johnson pondera que o sucesso dos estudantes não pode ser medido só pelo desempenho em avaliações dos governos e de mecanismos internacionais. A qualidade, para Johnson, também envolve fatores mais difíceis de serem mensurados, como a felicidade dos alunos, se eles têm apoio dos pais e da escola, se são incentivados em suas habilidades. Garantir isso envolve, prioritariamente, investimentos nos professores, mas também em outras políticas sociais nas escolas, como de saúde para garantir o bem-estar das crianças e adolescentes.
- Professor do Insper, Fernando Schüler é um defensor das parcerias privadas como forma de melhorar a educação, seja por meio de voucher ou das escolas charter – este último, modelo que considera de mais rápida e fácil implementação no Brasil. Segundo ele, os debates sobre a qualidade se arrastam há mais de 30 anos, sem avanços, porque o sistema estatal é burocrático e os gestores têm pouco espaço para propor mudanças — não podem demitir profissionais com baixo desempenho e descontratar serviços ineficientes, por exemplo. Ele defende a premiação a professores com melhores resultados e uma base curricular forte.
- O professor aposentado da Unicamp e especialista em políticas de avaliação Luiz Carlos Freitas diz que não existe “bala de prata”, mas um conjunto de soluções complexas, como introduzir o tempo integral na Educação Infantil e no Ensino Fundamental e reduzir os alunos por turma para que o professor dê conta da diversidade de desempenhos e ensine melhor. Segundo ele, todas as medidas também passam pela necessidade de professores bem qualificados e bem pagos.
Fonte: Angela Chagas – Zero Hora
Data: 31/05/2019