EaD: entre a venda de logins e a valorização do professor
Instituições de ensino superior tradicionais enfrentam dilemas em um cenário de grande concorrência e com a expansão desenfreada dos modelos mercantis
Seria o Ensino a Distância (EaD) um simples modelo de negócio – uma mera venda de logins para estudantes que nem sempre concluem os cursos? Ou representa uma oportunidade para as universidades tradicionais se reinventarem e oportunizarem o acesso ao ensino superior àqueles que não tiveram chances de ingressar em uma faculdade em outras épocas? Esses questionamentos se impõem como dilema às instituições de ensino superior tradicionais em um cenário de grande concorrência e da expansão desenfreada com os modelos mercantis.
Nos últimos anos, o acesso ao ensino superior por meio de cursos a distância teve um aumento significativo. E não apenas por conta da pandemia, que acelerou o processo.
No Censo da Educação de 2018, chamou a atenção: o número de vagas em cursos superiores EaD ultrapassara o dos presenciais no Brasil. Foram ofertadas 7.170.567 vagas de EaD, contra 6.358.534 presenciais. No entanto, no que diz respeito às matrículas, o número de alunos no presencial ainda foi maior. Conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), de 2009 a 2019, o EaD cresceu 378,9%, um aumento de 4,7 vezes. O presencial ficou em 17,8%.
Diante deste cenário, com abundância de vagas, ficam alguns questionamentos. Como as instituições particulares de ensino superior, em especial as com protagonismo histórico, estão conduzindo esse processo de adaptação aos formatos híbrido e a distância?
Campanhas agressivas para conquistar matrículas
Apesar de sermos diariamente bombardeados por anúncios de cursos de graduação a distância, inclusive em intervalos de horário nobre na TV, vale lembrar que o formato EaD não é algo tão novo dentro da educação superior brasileira. Ainda em 1996, a lei 9.394/96 (LDB) já previa a liberdade para que as instituições pudessem oferecer essa modalidade, desde que o credenciamento tivesse a aprovação do MEC.
Nos últimos anos, foi possível identificar uma forte aceleração na oferta de vagas, que, em grande parte das vezes, vem acompanhada de massivas campanhas publicitárias – a maioria orbitando em torno do preço das mensalidades.
Mesmo assim, é inquestionável o fato de que mais pessoas estão tendo acesso à formação universitária.
Nesse contexto, é possível afirmar que o Ensino a Distância é um caminho sem volta. Mas como as IES estão ofertando esse modelo?
Caminho próprio ainda é oneroso
A Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) apostou em um modelo próprio. De acordo com a gerente acadêmica de educação on-line da instituição, Laura Dalla Zen, priorizou-se a qualidade do que é oferecido aos alunos no ambiente virtual. “A preocupação maior é ter um material didático próprio, elaborado pelos professores, além de oferecer um modelo interacional, com participação e interação dos alunos.”
Segundo a professora, a cada início de semestre os conteúdos dados aos alunos EaD são revisados pelos professores da universidade. Além disso, Laura explicou à reportagem que a mediação junto aos alunos é feita por tutores mestres e doutores na área do curso, com o suporte de professores chamados de curadores. São eles os responsáveis por agregar novas informações ao conteúdo oferecido aos alunos que fazem aulas de forma remota.
“Mesmo com todos os ajustes e adequações, o EaD da Unisinos ainda é o mais caro do mercado”, afirma.
A professora destaca que não vê o EaD como uma modalidade inferior dentro da universidade: “O curso de Ciências Contábeis EaD, por exemplo, obteve uma nota no Enade maior do que o presencial, o que só comprova que os cursos são parelhos. O que temos no EaD é uma outra modalidade de aluno, que, por determinadas circunstâncias da vida, inclusive financeira, fez essa escolha”.
Outra instituição tradicional do Rio Grande do Sul que optou por um gerenciamento próprio do ensino a distância foi a Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Conforme o coordenador do EaD, Luciano Zamberlan, a Universidade já opera com cursos remotos desde 2004, e foi esse conhecimento que ajudou na escolha do modelo adotado: “A Unijuí optou pela produção de conteúdos a partir dos nossos professores, ou seja, os mesmos que estão na graduação, pós, mestrado e doutorado. É uma maneira de colocar a nossa marca nesses materiais”, afirma.
Embora a mediação também passe por tutores, Luciano explica que os professores do presencial participam ativamente da interação com os alunos.
“Foi uma opção institucional, embora haja implicações no ponto de vista financeiro, pois a gente não compete nos mesmos patamares de preço dos grandes players nacionais. Ainda assim, conseguimos ter cursos de alta qualidade, preservando a identidade institucional por meio dos nossos professores”, complementa.
A opção pela terceirização na criação de conteúdos
Por outro lado, algumas universidades optaram por modelos em parceria com editoras ou fornecedoras de conteúdo e plataformas, como é o caso da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), que no momento atua em conjunto com o Grupo A, na graduação. Atualmente, a universidade oferta 20 cursos EaD, como Administração, Educação Física e Engenharia de Produção. A conquista e a retenção dos estudantes ficam por conta do Grupo A.
Para Rudimar Serpa, coordenador da assessoria de ensino a distância da Unisc, um problema desse tipo de ensino ocorre pelo fato de ele ser pensado seguindo a lógica do modelo presencial. No caso da Unisc, ele garante que a adoção do modelo em parceria com uma outra empresa foi amplamente discutida e avaliada previamente pela instituição.
Conforme Serpa, a grande vantagem de estar junto com o Grupo A se dá pela agilidade na produção dos conteúdos: “Não é um processo tão simples utilizar o formato presencial nosso, que é tão exitoso, e fazer essa transposição para o EaD. Em um determinado momento, nós experienciamos isso, mas não conseguimos a agilidade que gostaríamos”, compara.
Segundo ele, os materiais produzidos pelo Grupo A são revisados pelos professores da Unisc antes de serem disponibilizados aos alunos. Quanto aos tutores que dão suporte aos estudantes de EaD, ele garante que são funcionários técnico-administrativos da instituição.
Sobre o uso de materiais terceirizados para a construção das disciplinas, Rudimar defende que o Grupo A disponibiliza cerca de 19 mil unidades de aprendizado (módulos), e que a montagem das disciplinas ocorre a partir desses conteúdos, os quais são escolhidos por professores da universidade.
Quando questionado sobre o fato de os materiais trabalhados no ambiente virtual de aprendizagem não serem de produção própria da Unisc, Rudimar disse:
“A lógica é como tu adotares um livro didático para a disciplina que vai ministrar, em que você vai numa biblioteca, seleciona quais obras e as usa em sala de aula”.
Perguntado pela reportagem se a parceria com uma empresa terceirizada para produção de conteúdos não fere os princípios comunitários, a autonomia e as características que dão identidade à Unisc, ele respondeu “que não”, e reforçou o fato de que este modelo permite oferecer cursos de ensino superior a pessoas que antes não tinham acesso a um diploma.
“Quando você promove um curso de graduação a distância, você está promovendo pesquisa, extensão e todo um conjunto de ações que refletem na comunidade”, acrescenta.
Além da Unisc, apuramos que no Rio Grande do Sul esse formato de parceria com o Grupo A – antiga Artmed – também ocorre na UCS, UCPel, URI e Urcamp, inclusive com as mesmas campanhas promocionais e formas de ingresso.
Preocupação com a qualidade e valorização dos professores
Na opinião de Marcos Fuhr, diretor do Sinpro/RS, sindicato que representa os professores da rede privada no RS, essa prática da parceria do capital privado com instituições comunitárias gera bastante preocupação.
“Isso desprestigia os professores das próprias instituições, que poderiam estar incumbidos de formatar cursos a distância, garantindo carga horária e salário para esse trabalho”, argumenta.
Fuhr reforça que a crítica não se dá ao formato do ensino a distância em si, mas sim à opção das instituições de ensino que buscaram a terceirização para implementar o EaD.
“Não tem como resistir à questão da expansão do EaD. Infelizmente, o Brasil é um país que, em função da frouxidão da legislação e das normativas, permitiu um crescimento desmensurado e uma implementação completamente desenfreada da educação a distância no ensino superior. As instituições comunitárias, que são as maiores do Rio Grande do Sul, demoraram muito para se dar conta de que era impossível resistir ao EaD. E quando se deram conta de que precisavam entrar nesse mercado, muitas o fizeram de forma atabalhoada, pela via dessas parcerias, que, ao nosso ver, são muito questionáveis.”
A empregabilidade dos graduados em EaD
Em tese, o diploma de quem se forma em um curso a distância é exatamente o mesmo de quem tem uma formação presencial. Isso significa que, supostamente, ambos teriam as mesmas chances no mercado de trabalho.
Cássio Mattos, vice-presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), garantiu que o preconceito que existia até alguns anos atrás com egressos de cursos EaD já não acontece mais com tanta frequência.
“A discussão hoje nas empresas de recrutamento está muito menos intensa em se a pessoa tem formação por EaD ou presencial, e muito mais pela trajetória de carreira para ver o quanto esses profissionais têm alinhamento com as demandas dos clientes”, assegura.
Cássio chama a atenção para o fato de que, atualmente, 90% das demissões nas empresas ocorrerem por questões comportamentais, e não pelo conhecimento técnico.
“Quando conversamos sobre EaD ou presencial, nós estamos falando sobre conhecimento, não sobre comportamento. Estamos falando de hard skills (aptidões técnicas) e soft skills (habilidades sociocomportamentais mais elaboradas), e os profissionais que estão tendo sucesso no mercado hoje são aqueles que têm consistência técnica com a consistência comportamental”, acrescenta.
Modelo próprio centrado no professor é diferencial de qualidade
Heitor Strogulski, diretor da Flamingo Edu, trabalha com consultoria na área de EaD e aponta algumas características da modalidade, especialmente no que diz respeito aos atrativos em fazer um curso a distância, e o principal é a questão do preço, que permite a estudantes de menor renda cursarem uma faculdade.
“As grandes corporações começaram a disputar os alunos de maneira agressiva, o que acho bastante natural, devido ao empobrecimento da população. Se é suficiente só ter o diploma para estar no mercado de trabalho, as pessoas podem comprar esses cursos”, explica.
Entretanto, Heitor destaca que o índice de evasão no EaD é alto, pois exige que o estudante tenha uma postura mais ativa em relação ao aprendizado, e que uma estratégia para evitar essa desistência é o uso da imagem do professor na retenção dos estudantes.
Por conta disso, ele acredita que muitas instituições estão voltando mais a atenção para o ensino híbrido, cuja característica é ter encontros com os professores, sobretudo nas disciplinas práticas, deixando a teoria para o formato EaD.
Diante de um cenário no qual o EaD veio para ficar, Heitor aponta um caminho para as instituições que primam pela qualidade do ensino: “A única forma de competir com grandes grupos é ter um modelo próprio, trabalhar com diferenciação local”, complementa.
O consultor conclui afirmando que a evolução do EaD passa por evidenciar a figura do professor, assim como acontece em países como o Canadá, onde não há diferenciação entre os formatos: “As pessoas estudam materiais em casa e outros em sala de aula, mas na hora da apresentação de um curso, está lá a figura do coordenador, dos professores”.
Por: Extra Classe