Brasil perde bilhões por ineficiência em educação, diz ex-cotado ao MEC
Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna que chegou a ser convidado para ser ministro de Bolsonaro, diz que MEC ainda é transatlântico que não encontrou rumo
cuja paralisia
pode causar ainda mais retrocessos à educação do país.
A ineficiência, a reprovação de alunos e o abandono escolar custam ao Brasil, por ano, mais de R$ 30 bilhões, desde a educação básica até o ensino superior, diz Mozart Neves Ramos, diretor de articulação e inovação do Instituto Ayrton Senna e um dos maiores especialistas em educação pública do país.
Ele explica que esse número se refere ao gasto de dinheiro com alunos que entram nas primeiras séries e avançam na vida escolar sem obter o aprendizado adequado – ou, o que é pior, abandonam a escola no meio do caminho.
Ramos avalia, também, que o atual cenário de paralisia
no Ministério da Educação (MEC) pode gerar ainda mais retrocessos. É um transatlântico, só que está parado procurando rumo
, diz sobre o Ministério.
Ramos tem quatro décadas de experiência na educação. Foi reitor da Universidade Federal de Pernambuco, secretário de Educação do mesmo Estado e hoje está no Instituto Ayrton Senna, além de ser autor de livros sobre o tema – o mais recente, Sem Educação Não Haverá Futuro (ed. Moderna/Fundação Santillana), acaba de ser lançado.
Ele contou em abril ao programa Roda Viva, da TV Cultura, que chegou a ser convidado (e a aceitar) ao cargo de ministro da Educação do então presidente eleito Jair Bolsonaro em novembro do ano passado, mas seu nome acabou sendo vetado pela bancada evangélica, próxima ao governo.
Na segunda-feira (10/6), em São Paulo, Ramos participou do lançamento de um projeto de alfabetização do Instituto Ayrton Senna, que visa a melhorar os maus índices de alfabetização brasileiros e ao mesmo tempo estimular o desenvolvimento de habilidades socioemocionais nas crianças.
Em entrevista à BBC News Brasil, o especialista explica como atrasos na alfabetização prejudicam toda a cadeia da educação e defende que as universidades proponham uma agenda para melhorar a formação de professores, um grande gargalo da educação do país. Veja os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil – Qual o diagnóstico que levou vocês (do Instituto Ayrton Senna) a pensarem em um plano de alfabetização?
Mozart Neves Ramos – É o impacto da não alfabetização das crianças na idade certa em relação ao futuro de qualquer país. Entre as crianças brasileiras que concluem o terceiro ano do ensino fundamental (e algumas já com nove anos), 55 de cada 100 não sabem ler, contar e escrever adequadamente para essa fase da sua vida escolar. O que naturalmente pode comprometer seu futuro escolar nas etapas seguintes.
Quando a alfabetização não se realiza na idade certa, os impactos imediatos são crianças que não conseguem progredir nos estudos e tendem a no futuro entrar para os chamados nem-nem
, que não estudam nem trabalham. A ponta do iceberg de todo o fracasso escolar é a não alfabetização adequada na idade certa.
O que nos preocupa é que precisamos da alfabetização tradicional para resolver esse mau desempenho do Brasil, mas entendemos que o mundo atual e futuro vai exigir outras qualidades (das crianças). O Conselho Nacional de Educação (órgão que auxilia o MEC) percebeu a importância dessa cooperação com o Instituto Ayrton Senna, que faz um trabalho (de estímulo) às competências socioemocionais, como criatividade, pensamento crítico, colaboração, comunicação, inovação.
BBC News Brasil – É preciso um olhar mais individualizado à criança e menos massificado no que diz respeito à alfabetização?
Ramos – Principalmente para uma criança em situação delicada, por exemplo, que já tem 10, 12 anos de idade e não está plenamente alfabetizada. Ela tem grandes chances de abandonar a escola, porque já acumulou um certo fracasso escolar.
A gente precisa melhorar a autoestima e a autoconfiança dela, competências importantes para que possa acreditar nela mesma e saber que é possível superar suas dificuldades e dar seguimento à vida escolar e pessoal com sucesso.
BBC News Brasil – A alfabetização na idade certa é uma das metas do Plano Nacional de Educação (PNE, conjunto de 20 metas para educação aprovadas em lei em 2014, com validade até 2024), que estão muito distantes de serem cumpridas. Como avalia o plano até agora? Ele está escanteado ou ainda dá para dizer que temos metas de educação para 2024?
Ramos – Lamentavelmente, algumas metas já deveriam ter sido alcançadas em 2016, por exemplo a universalização (da educação) para crianças de 4 a 17 anos. As metas não foram alcançadas, e de quem é essa responsabilidade?
Acho que uma das grandes fragilidades do PNE é a ausência de responsabilização. Enquanto a gente não tiver clareza do papel de cada um dos entes federativos em relação ao cumprimento das metas e as consequências atreladas a isso, acho que o plano perde força política.
Veja, nós falamos hoje (no evento) sobre o exemplo do Ceará (que tem índices de alfabetização superiores à media do país), de seu regime de colaboração e seu esforço em alfabetizar aos sete anos de idade. Mas tem um ponto que é muito importante: a distribuição (do dinheiro) do ICMS do Ceará (aos municípios) não é de acordo com o número de crianças matriculadas (nas escolas de cada município), mas com base no número de crianças alfabetizadas. Isso decorre de um sistema de avaliação anual, e os prefeitos recebem dinheiro de acordo com o percentual de crianças alfabetizadas.
BBC News Brasil – Ou seja, vincular a verba ao cumprimento de uma meta.
Ramos – Exatamente, dando responsabilidade maior a quem é de direito – o prefeito, de ter de fato uma política que alfabetize as crianças. Quando há consequência, o prefeito, o ministro ou o governador olha com outro olhar. Quando não tem consequência, a meta não é minha, não é sua. E não é alcançada. E o PNE vai perdendo prestígio social, político e não é levado a sério como deveria ser, por se tratar de uma lei.
BBC News Brasil – Você acha que a questão da responsabilização acaba gerando diversos fracassos?
Ramos – O problema do Brasil não é legislação, e nem é tanto o financiamento, como alguns costumam atribuir. O Brasil praticamente triplicou o (gasto) per capita com alunos de 2000 a 2015 na educação básica – era de R$ 2.100 e hoje é R$ 6.300. Mas se a gente olha principalmente para os anos finais (do ensino fundamental) e para o ensino médio, nada aconteceu. Temos um percentual grande de crianças não alfabetizadas. Entendo que a (ausência de) gestão, de cumprimento de metas e de responsabilização clara torna fragilizada a política pública. Deveria haver consequência e identificação clara de quem é o responsável pelo não cumprimento de uma meta.
BBC News Brasil – Mesmo a responsabilização individual?
Ramos – A gente não tem uma lei de responsabilização, mas vou te dar um exemplo desse meu pensamento. Quando fui reeleito reitor da Universidade Federal de Pernambuco, fui ao Tribunal de Contas da União, que julga as contas do reitor, e pedi que eles analisassem as minhas contas não somente pelo aspecto contábil, mas com base nos indicadores de desempenho. Disse que queria profissionalizar minha gestão e gostaria que o TCU avaliasse se estava cumprindo as metas propostas no meu plano anual. Eles mandaram técnicos para a Inglaterra para se qualificarem para avaliar desempenho de instituições de ensino superior.
Gastar dinheiro público corretamente não é mérito, é obrigação. Mas gastar com eficiência, eficácia e efetividade é um grande mérito. E precisamos saber identificar aquele gestor que tem seu mérito nisso, seja no campo estadual, municipal e federal, para separar o joio do trigo.
BBC News Brasil – Vivemos um momento de contingenciamento no MEC, em que a priorização de gastos está em debate. O que devemos priorizar, e como valorizar a educação básica – plano do atual governo – sem sucatear a universidade pública, alvo do contingenciamento?
Ramos – A prioridade tem de ser educação básica, mas sem criar uma situação de (impedimento) de funcionamento das universidades, que poderiam melhorar em eficiência e ter um maior compromisso com a formação de professores. Bolsa (de estudos), por exemplo, não se contingencia. Isso significa a perda do aluno, que não vai poder esperar melhorar a economia (para voltar a estudar). Ele precisa pagar aluguel, se alimentar. Quando esse tipo de contingenciamento chega às bolsas de pós-graduação, é grave, porque o futuro do Brasil passa de pesquisa de bom nível.
(Mas) te dou um número: de cada 100 crianças que começam a primeira série do ensino fundamental, somente a metade chega ao final do terceiro ano do ensino médio. A gente perde 50% das crianças ao longo do percurso, e as que chegam ao final têm índices de aprendizagem muito baixos. De cada cem que concluem o ensino médio, só sete aprenderam o que seria esperado em matemática e 28 em língua portuguesa.
No ensino superior, a gente vê a mesma coisa, no público e no particular. Se a gente vê o número de ingressantes e concluentes, vê que a produtividade das universidades brasileiras é de 50%. Hoje, entram cerca de 1,8 milhão de alunos ano no ensino superior – deveriam sair, portanto, daqui a cinco anos, 1,8 milhão (de formandos). Mas saem 900 mil, 800 mil.
A gente perde, desde a educação básica, por ineficiência, reprovação e abandono algo em torno de R$ 27 bilhões por ano. Só a perda por abandono no ensino superior público é de R$ 5 bilhões por ano; e R$ 6 bilhões por ano no privado.
O que quero dizer com isso é que o Brasil tem uma ineficiência tão grande que a gente perde, só na área pública, R$ 33 a 35 bilhões por ano.
Eu faria algo diferente: chamaria as universidades públicas e pediria a elas uma agenda de eficiência. Vocês podem me propor como melhorar o abandono (escolar) e se comprometer com melhorar a educação básica que passe pela formação de professores, que é muito ruim no Brasil. Me tragam uma formação que faça efeito no chão de escola, com base em evidências e uma melhoria na própria eficiência do sistema, que também é muito ruim, formando só metade de quem entra
.
BBC News Brasil – Onde estão essas ineficiências, esses gargalos?
Ramos – No ensino superior, são fatores diferentes no público e no privado. Mas o que há em comum entre eles é a baixa qualidade dos alunos que entram na universidade, que chegam com muitos déficits de aprendizagem. Os dois primeiros anos (na universidade) sentem muito o impacto desse déficit, principalmente em cursos com alto índice de matematicidade, como engenharias, economia, administração.
Mas há outros fatores também, na forma de ingresso. O aluno está no meio da sua formação juvenil, estão mudando seu corpo, sua cabeça, seus valores. E às vezes ele faz uma escolha que percebe que não era aquilo que ele queria. Me deparei com muitos alunos assim nos meus 37 anos em universidade federal.
E há as demandas do mercado. Veja alunos de informática: com dois anos e meio de curso, eles já têm competências que lhe garantem postos no mercado de trabalho, ganhando às vezes mais do que o professor que dá aula para eles. Vi isso na UFPE. O mundo laboral está mudando muito, e às vezes o jovem (desanima em) ficar quatro ou cinco anos estudando; a universidade já não é aquele sonho dourado do passado.
No setor privado, há outro fator: com o desemprego e a economia (ruim) e o Fies (programa federal de financiamento de gastos universitários) com uma grande redução de contratos, como o aluno de baixa renda vai entrar no ensino superior privado?
Por isso esse setor está olhando muito para o EAD (ensino à distância), em que o custo por aluno é menor. É um caminho, e acho que o caminho futuro é o ensino híbrido, com algumas disciplinas online e outras presenciais.
BBC News Brasil – Mas é possível que tenhamos uma precarização ainda maior nesse setor por conta disso? Na formação de professores, por exemplo, fala-se como o EAD é deficitário, desassociado da prática e do chão da escola. E o ministro (da Educação Abraham Weintraub) sinalizou apoio ao ensino superior privado.
Ramos – Sendo franco, estou muito preocupado. Quando era pró-reitor acadêmico, na década de 1990, lutei muito pelas licenciaturas (cursos para formação de professores) à noite, porque as diurnas eram ociosas. Boa parte dos interessados já trabalhavam e tinham que estudar à noite.
Qual foi o grande problema: é que se a gente quiser uma formação com residência pedagógica, como fazer com alunos trabalhadores que estudam à noite com menos horas de tempo de estudo? E o aluno aprende também com iniciação científica, iniciação à docência, atividades que complementam a formação e fixam o aluno na universidade. O aluno à noite não tem como fazer. É uma preocupação como vamos sair dessa encruzilhada. Não é um problema de horas, mas de como qualificar essas horas (da formação de professores), como fazer residência pedagógica.
BBC News Brasil – No momento atual corremos o risco de retrocessos na educação, por essa combinação de contingenciamento e dificuldade de interlocução (no MEC)?
Ramos – O Brasil vive uma crise econômica grave, e o presidente (Jair Bolsonaro) tem falado abertamente disso. Não sei até que ponto isso tem a ver com a aprovação da reforma da Previdência, como mecanismo de pressão. Mas o sistema privado passa por um momento complicado por causa do Fies.
Na área pública, já vem de algum tempo – e não é desse governo – a redução líquida dos orçamentos (das universidades federais). E o modelo de gestão ainda é muito arcaico. Se pelo menos as universidades (federais) tivessem mais autonomia, como fazem as universidades paulistas (USP, Unesp, Unicamp), que recebem percentual do ICMS e constroem seus orçamentos. Acho que as universidades vão precisar se reinventar, ter o apoio da sociedade e dos parlamentares no Congresso para sobreviver a esse momento.
BBC News Brasil – Na educação básica, ouvi de escolas da rede estadual e municipal dificuldade em se planejar, livros didáticos que às vezes chegam, às vezes não. Pode haver retrocessos também na educação básica?
Ramos – Sim, porque passados seis meses de governo tivemos dois ministros; órgãos importantes como o Inep (que realiza o Enem e demais avaliações da educação) já tiveram três técnicos (em seu comando) e ainda não temos a cara da área de educação do governo Bolsonaro. Qual a política e os fluxos delas, para que efetivamente as redes estaduais e municipais possam (funcionar) com o complemento de renda da União? Programas paralisados podem ter um impacto negativo na já baixa qualidade da educação de hoje.
Óbvio que o problema não é só financeiro, mas (precisamos) resolver a questão financeira, que é grave para alguns municípios – embora haja muito problema de gestão, desperdício e desvio de dinheiro em uma parcela importante de municípios.
BBC News Brasil – Sobre o Fundeb (fundo federal que financia a maior parte da educação básica pública e que, por lei, deixa de valer no ano que vem), como podemos melhorar esse mecanismo?
Ramos – Esperamos que o Fundeb seja renovado, algo que não é tão simples. A gente já está no meio do ano, e (por se tratar de) uma emenda na Constituição precisa de duas votações sucessivas com quórum qualificado, para renovar ainda neste ano (ou seja, precisa ser aprovada em dois turnos no Plenário da Câmara dos Deputados, com ao menos 308 votos). Não é trivial e tem que ser aprovado agora.
Além disso, a gente espera – embora seja difícil, porque o clima econômico não está ajudando – incorporar ao Fundeb parâmetros de qualidade, como os do Ceará, para estimular resultados. E mais: aumentar a participação da União, que só coloca 10% (nos recursos do Fundeb). Há um movimento para que chegue a 15%, mas com o atual clima econômico e a agenda do Congresso travada pela Previdência, vai ser preciso ter muita articulação e boa vontade.
BBC News Brasil – Muitas ações do MEC têm sido lastreadas por justificativas de balbúrdia
, doutrinação
, ideologia em sala de aula
. O que você, com sua experiência em educação, vê de consistente nisso, ou isso atrapalha a realização de políticas concretas?
Ramos – Olha, fui reitor por oito anos de uma grande universidade, a UFPE. O clima na época já era complexo, mas a universidade sempre foi da vanguarda de uma política mais à esquerda mesmo. Nunca fui filiado a nada, nunca tive participação expressiva no campo político. Sempre fui acadêmico, técnico, mas aprendi a ouvir as pessoas e a entender que a posição diferente da minha poderia me ajudar a ampliar minha visão de mundo.
Quando o MEC fica nesse negócio de escola sem partido
, ideologia de gênero
, balbúrdia em universidade
, deveria na verdade estar preocupado na internacionalização da universidade, em criar mecanismos para mobilidade de estudante, dupla titulação, criar convênios de cooperação com universidades de renome para trocas de professores e alunos, criar plano estratégico com base em metas e resultados.
Se ela (universidade) tem uma visão mais política mas está cumprindo seu papel social, pouco me interessa. Sempre disse que não estou preocupado que as pessoas pensem como eu penso, estou preocupado que façam o que a sociedade espera delas. Se elas fizerem, estarão fazendo para a sociedade, e portanto para mim também. A gente (na UFPE) não ficava preso a uma situação em que todo mundo tinha que pensar igual para a universidade funcionar.
Dei títulos de professor emérito a pessoas mais à direita porque representavam certo setor da universidade, e também ao professor Paulo Freire, que hoje está sendo tão questionado pelo atual Ministério da Educação. Tive o maior prazer, privilégio e honra de dar a Paulo o título de professor emérito da UFPE.
A universidade é plural, jovem é rebelde mesmo, e faz parte (ter) a capacidade de dialogar com esse jovem, não confrontá-lo. O jovem precisa ter voz e entendimento que essa voz pode ter uma influência positiva na universidade e na sociedade. É preciso ter tolerância e uma agenda mais propositiva e menos de enfrentamento.
BBC News Brasil – Em entrevista ao programa Roda Viva, dois meses atrás, você comparou o MEC a um transatlântico. Acha que esse transatlântico já achou um rumo, ou está à deriva?
Ramos – Ele ainda é um transatlântico, só que está parado procurando rumo, para onde eu vou?
. A própria Secretaria de Educação Básica, de modo até interessante, convidou o terceiro setor, a Consed (Conselho de Secretários Estaduais da Educação) e a Undime (União dos Dirigentes Municipais da Educação) para pensar suas estratégias, mostrando que ainda está pensando onde vou colocar minhas fichas
.
Se por um lado isso retrata uma coisa muito positiva, de chamar os atores da sociedade para construir juntos – e acho que isso foi uma jogada bem legal do MEC -, isso mostra também uma paralisia. Mostra que ainda não está funcionando. Então, continua sendo um transatlântico, porque tem muitos programas, (abrangendo) coisas que deveriam ser dos Estados e municípios, mas que está parado ou andando muito lentamente.
Fonte: UOL Educação
Data: 12/06/2019