Situações negativas são relatadas de forma frequente, muitas delas chegando a gerar a chamada ansiedade matemática. Como reverter esse quadro?
por Ruam Oliveira
No primeiro dia de aula para os graduandos de licenciatura em matemática, a professora Etienne Lautenschlager faz uma provocação: “Para você, a matemática é…” À pergunta, segue-se um pedido para que desenhem em uma folha em branco a própria percepção. Dada a tarefa, a educadora sai da sala por 40 minutos, para deixar os estudantes mais livres para desenvolver a tarefa.
Os desenhos feitos pelos futuros professores de matemática podem chocar.. Entre eles, representações de montanhas intransponíveis, com o conhecimento fincado no topo, sem chances de acesso.
Há também os que representaram a matemática como um alien, uma dúvida gigante, vômito ou até mesmo aquela caricata figura que remete à morte.
Etienne é doutora em neurociência e cognição e professora no departamento de educação e no programa de pós-graduação em inovação tecnológica educacional da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). Ao aplicar a atividade, e com os desenhos recolhidos, ao longo de um ano ela organiza conversas e apresentações de uma matemática mais visual, tendo como objetivo modificar essa mentalidade.
A ansiedade no meio do caminho
A dificuldade que muitas pessoas enfrentam com a disciplina, sejam professores, futuros professores ou estudantes, manifesta-se na chamada “Ansiedade Matemática”. Essa resposta emocional, caracterizada por uma sensação de tensão ou medo em relação aos números, interfere tanto na capacidade de resolver problemas numéricos quanto na forma como as pessoas se relacionam com a matemática de maneira geral.
O PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), estudo divulgado em 2023 pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico,organização internacional composta por 38 países, na sua maioria economias avançadas) revelou que, na média dos países integrantes da rede, 65% dos estudantes têm ansiedade em relação às suas notas na matemática.
O estudo também identificou que 40% dos alunos se sentem nervosos, tensos ou desamparados resolvendo problemas matemáticos. Esses índices são maiores no Brasil: 79,5% e 62,3% respectivamente.
Desempenho e emoções
De acordo com Mariuche Gomides, professora assistente do departamento de Psicologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a maneira como as pessoas se sentem em relação à matemática impacta diretamente no desempenho que têm neste âmbito. Ou seja, a ansiedade pode ser tanto uma causa quanto uma consequência.
“Ela pode ser uma causa quando a pessoa se sente ansiosa, o que faz com que tenha pensamentos de que não vai dar conta, de que não é boa o suficiente, de que será criticada pelos pais, colegas ou pela professora. Essa sobrecarga na memória de trabalho acaba prejudicando o desempenho, levando-a a ir mal”, diz.
“Por outro lado, sabemos também que um desempenho ruim pode gerar uma atitude negativa em relação à matemática, fazendo com que, por exemplo, a pessoa evite participar das aulas, fazer as lições de casa ou estudar a disciplina”, completa a docente, que pesquisa cognição numérica e aprendizagem da matemática.
A ansiedade matemática não deve ser confundida com outros quadros de ansiedade que os docentes possam apresentar. De maneira mais ampla, uma pesquisa realizada em 2022 pelo Instituto Ame sua Mente, em parceria com a Nova Escola, mostrou o aumento de educadores que avaliaram sua saúde mental como “ruim” ou “muito ruim”. O índice cresceu em relação ao ano anterior, saindo de 13,7% para 21,5%. Grande parte dos casos foram puxados pelos impactos da pandemia de Covid-19.
Sobrecarga de trabalho e quadros de burnout (síndrome do esgotamento profissional), também impactam a saúde mental dos professores, não estando necessariamente ligados à matemática.
Escutar para ensinar e aprender
Quando pede para seus alunos desenharem livremente como enxergam a matemática, o objetivo da professora Etienne é, primeiramente, ouvi-los. A escuta ativa como ponto de partida serve para estabelecer um diagnóstico da classe e, assim, pensar conjuntamente em como enfrentar essas limitações.
A abordagem se baseia no modelo MTSK, ou “Conhecimento Especializado do Professor que Ensina Matemática”, um instrumento que analisa diferentes práticas docentes a fim de verificar o conhecimento e o domínio dos professores de matemática em relação ao que estão ensinando. Esse modelo não leva em consideração o que esses profissionais sabem em outras áreas, e infere que as crenças dos professores sobre a matemática e seu ensino influenciam diretamente suas decisões pedagógicas.
“Será que alguém que cultiva uma visão da matemática como sendo a morte, como sendo uma cabeça sendo arrancada, como uma montanha alta que não consegue subir… Será que essa pessoa consegue aprender bem matemática?”, questiona Etienne, referindo-se aos desenhos que recebeu de seus estudantes.
Talvez não consiga aprender, tampouco ensinar.
Em aulas de formação de professores, inclui momentos em que ela participa das aulas desses docentes para coletar dados sobre as práticas em sala. Ou seja, ela acompanha os mesmos graduandos que realizam desenhos expressando seu receio em relação à matemática, a fim de compreender como essa percepção se transforma ao longo do tempo e com a experiência.
Conexão com a academia
O desejo de aliar pesquisa com a prática vem de um entendimento de que as universidades ainda preparam pouco os futuros professores para ensinar. Do ponto de vista de Etienne, muitos professores de faculdade estão distantes das realidades da sala de aula, o que dificulta que o aprendizado proposto nas licenciaturas seja realmente eficaz na hora em que os docentes precisarem realmente ensinar.
“Se você pegar um professor universitário aleatoriamente e perguntar: ‘Qual foi a última vez que você entrou em uma turma de nono ano? Como está a educação básica?’, ele provavelmente não saberá responder. Ele dá aula de matemática, mas não conhece a realidade da educação básica. Precisamos ter isso em mente: formamos professores para atuar na educação básica, mas, se não sabemos quem é esse público, se nunca estivemos lá (ou estivemos há muitos anos), estamos preparando essa pessoa para dar aula para quem? Se eu não sei quem é esse ‘quem’, eu não sei quem é um adolescente, percebe?”, afirma.
O Brasil possui atualmente cerca de 600 mil professores que ensinam matemática. Para auxiliar na melhoria da formação e pensar em novas políticas públicas que estruturem a formação inicial e continuada desses docentes, o MEC (Ministério da Educação), realizou uma escuta recentemente. As informações obtidas serão incorporadas no Compromisso Nacional Toda Matemática, pensado para o fortalecimento dessa área. O Porvir atuou como parceiro técnico desta escuta.
O que a matemática é para você…
“Quando comecei a ensinar, eu temia que algum aluno pudesse me fazer uma pergunta que eu não soubesse responder”, relembra Auricelio Carneiro de Morais, professor de matemática na Escola Estadual Santa Terezinha, em São João do Sabugi (RN). Esse receio o deixava ansioso antes mesmo de entrar na aula. Com o tempo, ele foi entendendo que tudo bem dizer “que não sabe” e que vai buscar entender melhor antes de trazer uma resposta.
O educador teve outros momentos em que sentiu a ansiedade tomar conta. Quando estava no mestrado, por exemplo, ele conta que sentia constantemente o sentimento de que não daria conta – o mesmo apontado pela pesquisadora Mariuche.
De acordo com João dos Santos Carmo e Aline Morales Simionato, pesquisadores do departamento de psicologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), a ansiedade em relação à matemática pode estar associada à trajetória escolar das pessoas, que podem ter vivido experiências negativas muito marcantes enquanto aprendiam esse componente.
Mas isso não é tudo.
Existe pessoa de exatas e pessoa de humanas?
Um outro desafio da área está relacionado aos mitos que circundam a matemática. Ditos como “a matemática não é para mim” ou “não sou uma pessoa de exatas”, colocam esse componente como algo destinado a pessoas específicas e não como um conteúdo que pode ser aprendido por qualquer um.
“Nossa cultura ocidental divulga informações controversas em relação à matemática, relacionando-a a algo de difícil apreensão, somente acessível a poucos indivíduos, que exige muito esforço e dedicação para ser dominado. Em casa é comum que os familiares divulguem essas regras às crianças. Na escola, muitos professores reforçam tais informações, seja por meio de regras inadequadas passadas aos alunos (matemática é difícil; só existe uma solução para cada problema; só o professor pode dizer se a solução está certa ou não), seja por meio de metodologias de ensino inadequadas seja pelo uso de controle aversivo”, escrevem os pesquisadores.
Auricelio também identifica que seu receio em lecionar vinha do fato de sentir que a licenciatura não o preparou o suficiente para a prática em sala de aula. “Havia um desequilíbrio entre os conteúdos matemáticos, o que era matemática pura e os pedagógicos”, disse.
Ele foi um dos alunos da professora Etienne. O seu desenho, menos negativo, mostrava o que ele via no horizonte: uma matemática mais aberta e visual. “Em outros tempos eu desenharia apenas números, pois pensava que a matemática se resumia a isso”. Ao invés disso, ele desenhou uma composição que se assemelhava ao logotipo da OBMEP (Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas), da qual, em 2024, ele e seus estudantes saíram com 3 medalhas de bronze.
Um professor ansioso gera um aluno ansioso?
Pesquisadores ouvidos pelo Porvir dizem que sim. A ansiedade pode ser “contagiante” e quando um professor entra ansioso na aula, esse sentimento pode ser percebido pela sala. Muitas vezes, eles reproduzem também ansiedades vividas quando ainda nem pensavam em ser professores.
A professora Mariuche afirma que existem evidências de transmissão intergeracional da ansiedade matemática, que pode ocorrer entre professor e aluno e também ser repassada entre as famílias. Em ambos os casos, há um impacto na aprendizagem.
“Estudos longitudinais mostram que quando temos um professor com alta ansiedade matemática as crianças aprendem menos ao longo do ano letivo”, afirma a pesquisadora.
Essa ansiedade é transmitida sem que a pessoa ansiosa perceba. Como exemplo, ela cita que quando um professor sente ansiedade devido à matemática, principalmente entre os educadores dos anos iniciais do ensino fundamental, ele pode dedicar menos tempo a esse componente e mais a língua portuguesa.
Contudo, essa ação pode significar menos oportunidades de aprendizagem para os estudantes e impactos diretos no desempenho da turma, como mostra esse estudo.
Caminhos e soluções
Para Mariuche, uma das formas de interromper esse ciclo é investindo na formação inicial dos professores. Ou seja, atuar tanto no currículo das licenciaturas, quanto de pedagogia. No caso da pedagogia, ela destaca que a carga horária dedicada à matemática ainda é pequena, o que influencia diretamente nas aprendizagens dos futuros professores.
“Temos que buscar melhorar o currículo, introduzindo práticas pedagógicas baseadas em evidências, ou seja, modelos educacionais que têm demonstrado bons resultados”, diz a docente.
Dados do PISA, mostram que 73% dos estudantes brasileiros ficaram abaixo do mínimo nesse componente (ante 31% da média de estudantes da OCDE).
O índice avalia competências em matemática, leitura e ciências, além de outras habilidades, como criatividade e pensamento crítico, por meio de uma prova aplicada em 81 países.
Mariuche ressalta que essa situação evidencia um cenário generalizado, que afeta tanto escolas públicas quanto privadas.
“Precisamos, portanto, pensar em formas de aprimorar o currículo das crianças, de modo que aprendam mais e com mais qualidade. Um modelo com fortes evidências de eficácia é o chamado modelo de resposta à intervenção (RTI)”, sugere ela.
A ideia desse modelo é avaliar as crianças de maneira sistemática e universal, monitorando continuamente seu progresso. As que forem identificadas como em risco de apresentar dificuldades de aprendizagem passam por diferentes camadas de intervenção. Inicialmente, recebem apoio em grupo e, caso continuem apresentando dificuldades, passam a ter intervenções mais específicas e individuais.
Esse modelo permite que as dificuldades de aprendizagem sejam identificadas e trabalhadas dentro do próprio contexto escolar. “Se observarmos os países com melhor desempenho no PISA, veremos que muitos adotaram, em alguma medida, o modelo de RTI”, pontua Mariuche.
Existe uma relação clara entre ansiedade matemática e desempenho em matemática. Se a matemática não for ensinada de forma eficiente aos estudantes, há uma tendência de que eles desenvolvam maior ansiedade em relação à disciplina, o que causa consequências a longo prazo: muitos acabam evitando carreiras com alta carga de matemática, justamente aquelas que são estratégicas para o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.
Um novo desenho da matemática
A intervenção inicial proposta pela professora Etienne é repetida no final do ciclo de formação. Ela acompanha turmas de licenciaturas em matemática durante dois semestres e, ao final do segundo, o pedido de desenho se transforma em uma solicitação de relato que responda: “O que é a matemática para você…”.
As respostas costumam ser bem diferentes dos desenhos iniciais. “Os alunos são convidados a falar sobre o que é matemática para eles, se essa percepção mudou, se continua a mesma ou se transformou de alguma forma. Normalmente, os relatos são muito significativos”, relata Etienne.
Desta nova intervenção, surgem relatos como:
“Professora, eu me sentia burro, mas percebi que estou aprendendo.”
“É muito legal quando a gente percebe que aprendeu alguma coisa.”
“Eu achava que matemática tinha que ser algo rápido, mas percebi que penso devagar — e mesmo assim chego lá.”
Quando estudantes reconhecem que conseguem usar a matemática e entendem que ela não é algo tão ruim, sua visão muda.
Depois da escuta inicial, a educadora planeja uma aula que seja acolhedora, reforçando que o erro faz parte da aprendizagem. Essa postura muda a perspectiva da turma, diminuindo a sensação de medo e ansiedade que possa surgir ao entrar em contato com a matemática.
“Procuro criar um ambiente acolhedor em relação ao erro, porque é assim que eu trabalho. Digo aos alunos que, se eles não me contarem exatamente o que estão pensando e como estão raciocinando, eu não consigo intervir de forma adequada. Por isso, incentivo que falem abertamente. Claro que, durante as aulas, em uma prova, é preciso ter cuidado para não errar. Mas dentro desse ambiente de aprendizagem, o erro é visto como parte natural do processo, e não como algo a ser combatido”, resume Etienne.
Por: Porvir