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Reggio Emilia e o encantamento como motor da educação infantil

Inspirada pela curiosidade das crianças, a abordagem Reggio Emilia valoriza a construção coletiva do conhecimento. Confira entrevista com formadoras da Reggio Children, instituição italiana que difunde essa filosofia educacional pelo mundo

por Ana Luísa D’Maschio

“A criança é feita de cem”, dizia Loris Malaguzzi (1920-1994), pedagogo italiano precursor da abordagem Reggio Emilia, considerada uma das experiências mais influentes da educação infantil no mundo.

Criada em meio à reconstrução social após a Segunda Guerra Mundial, a proposta nasceu do desejo de famílias trabalhadoras de transformar restos de destruição em espaços de esperança, erguendo escolas comunitárias com tijolos recuperados e recursos improváveis, como a venda de cavalos, caminhões e até um tanque de guerra abandonado.

Mais de 70 anos depois, a pedagogia que coloca a criança no centro do processo de aprendizagem e valoriza a escuta, a sensibilidade e as múltiplas formas de expressão consolidou-se como referência internacional em mais de 145 países. Reggio Emilia tornou-se um símbolo de que a educação pode ser, ao mesmo tempo, democrática, criativa e profundamente cultural. Para Malaguzzi, são três os elementos que mantêm uma escola viva: as crianças, os professores e os pais, em pé de igualdade.

Durante a 10.ª Conferência da RedSOLARE Brasil, realizada na Escola Concept, em São Paulo, o Porvir conversou com Marina Castagnetti e Paola Strozzi, formadoras da Reggio Children – instituição italiana que coordena internacionalmente iniciativas ligadas às escolas municipais de Reggio Emilia e atua em pesquisa, documentação e formação docente. No Brasil, a RedSOLARE é uma das cinco organizações que articulam a pedagogia Reggio Emilia na América Latina.

Na entrevista a seguir, as educadoras refletem sobre os valores que sustentam a abordagem, a centralidade da inclusão, o papel da comunidade e a importância do encantamento como motor da educação infantil.

Porvir – A abordagem Reggio Emilia nasceu como resposta à devastação da Segunda Guerra, em um contexto de reconstrução social e de valorização da democracia. Em um mundo que hoje volta a apresentar sinais de polarização e divisões profundas, como vocês percebem a recepção e a relevância dessa proposta educativa?
Marina Castagnetti:
A nossa abordagem educativa nasceu no final da Segunda Guerra Mundial, portanto, após a libertação do nazifascismo. Foi um período de grande dor, grande sofrimento e grandes privações. Em Reggio Emilia, uma cidade de porte pequeno a médio no norte da Itália, as pessoas encontraram um núcleo comum de renascimento e reconstrução social a partir das crianças, a partir do futuro, reconstruindo a sociedade por meio da construção de uma escola que, como costumamos dizer, foi construída tijolo por tijolo pelas pessoas.

Essa é a raiz, a matriz da nossa experiência: ter nascido do povo, das pessoas do nosso território, para reconstruir a sociedade em nome dos valores da democracia e a partir da escola — com uma nova ideia de escola. Nesse processo, os movimentos femininos e a figura do pedagogo Loris Malaguzzi tiveram um papel muito importante.

Porvir – A inclusão é um valor presente desde o início da abordagem. Como ele se traduz no dia a dia das escolas de Reggio Emilia?
Marina Castagnetti:
Certamente, vivemos numa época em que o mundo está polarizado. Nós acreditamos que, para as pessoas, e aqui me refiro a educadores, pais e todos que fazem parte dos contextos educativos, é importante que, na convivência civil, consigam dialogar e trocar ideias sobre a nossa visão de mundo, buscando abertura ao pensamento, às variações e nuances, e não ao confronto direto. O confronto gera violência, e infelizmente temos testemunhos muito dolorosos e devastadores disso no mundo. O convite que fazemos é para continuar encontrando formas de manter um diálogo em conjunto.

Porvir – Na prática, como o conceito das “Cem Linguagens das Crianças” se conecta à ética e à escuta sensível, e de que forma essa abordagem transforma o papel do professor no cotidiano escolar?
Marina Castagnetti:
A pergunta é muito interessante. A inclusão é um valor presente desde o início da nossa abordagem educativa e procuramos traduzi-la não apenas como uma declaração teórica, mas como responsabilidade e escolha também organizacional na vida cotidiana. Sobre os valores, não basta declará-los: é preciso vivê-los e traduzi-los todos os dias na escola com as crianças.

O que significa garantir que todas as crianças com deficiência tenham prioridade de ingresso nas escolas? Elas podem entrar em todas as creches e escolas com prioridade de acesso, nos casos em que não haja vaga para todos e seja necessário um processo de seleção.

Porvir – E o que significa ter essas crianças no grupo, garantindo que todos possam trabalhar juntos em pequenos grupos?
Marina Castagnetti:
Significa, por exemplo, a escolha de ter um professor extra para estar com todas as crianças, incluindo aquelas com direitos especiais, apoiando o trabalho em grupo; significa possibilitar encontros e trocas de ideias e experiências com as famílias.

Também inclui acolher crianças que vêm de diferentes partes do mundo, com diferentes línguas e culturas, dentro de experiências de pesquisa em grupo com outras crianças. Pensar a inclusão como valor nos chama, portanto, a uma responsabilidade organizacional.

Isso se conecta também ao conceito das “Cem linguagens da criança”, uma grande metáfora trazida pelo professor Loris Malaguzzi, fundador dessa experiência, junto a seus colaboradores, que se traduz na escolha (teórica e organizativa) de ter um ateliê, os chamados atelieristas e múltiplas linguagens que acolham as diferentes potencialidades de todas as crianças.

Ateliers Itinerantes
Um ateliê e um atelierista estão presentes em cada pré-escola municipal em Reggio Emilia desde o final da década de 1970. Os profissionais são parte integrante da abordagem, em diálogo contínuo com os outros espaços e perfis profissionais das escolas. O Centro Internacional Loris Malaguzzi oferece essas experiências na forma dos Ateliers da Cidade, espaços abertos a escolas, famílias, crianças e adultos. Esses ateliers também viajam pela Itália e pelo mundo como Ateliers Itinerantes, acompanhando exposições e encontros formativos, com o propósito de compartilhar e difundir a filosofia das “cem linguagens da criança” que inspira o modelo educacional de Reggio Emilia.

Porvir – Como a abordagem Reggio Emilia compreende e acompanha o interesse espontâneo de crianças que começam a ler e a brincar de escrever na primeira infância, motivadas pela curiosidade e pelo contato com livros?
Marina Castagnetti:
O processo de alfabetização na educação infantil também está incluído entre as possibilidades que podemos organizar e integrar no cotidiano com as crianças. Tudo depende de como fazemos isso, de como apresentamos às crianças e, sobretudo, de como nos preparamos como professores.

Quando declaramos valores educativos, eles não são como uma roupa que vestimos dependendo do evento ou ocasião. São algo que devemos partilhar e interpretar, especialmente nos contextos que projetamos e realizamos para as crianças, com as variações adequadas para cada faixa etária.

Porvir – Esse interesse é um processo natural?
Marina Castagnetti:
Não podemos generalizar: depende muito da idade das crianças e de como apresentamos as propostas. É muito importante a formação das professoras e a forma como a aprendizagem dos códigos alfanuméricos e da comunicação — na qual as crianças já estão imersas — é integrada às experiências, em pé de igualdade com outras vivências. Interpretamos esse aprendizado dentro de um contexto criativo, porque é uma curiosidade e um desejo das próprias crianças, inserido num processo natural de aprendizagem.

Princípios da Abordagem Reggio Emilia
A Abordagem Reggio Emilia valoriza a escola como uma comunidade viva, onde todos aprendem juntos, crianças, educadores e famílias. Seus princípios se baseiam em uma visão de infância criativa e participativa.

Trabalho colegiado e relacional: o aprendizado nasce da colaboração entre todos os profissionais da escola, que compartilham responsabilidades e reflexões sobre o cotidiano.

Presença de múltiplos educadores: as crianças convivem diariamente com diferentes professores e educadores, o que enriquece as experiências e amplia os pontos de vista.

Atelier e atelierista: o atelier é um espaço dedicado à experimentação e à expressão criativa, conduzido pelo atelierista, um profissional que integra arte, ciência e imaginação no processo educativo.

Cozinhas escolares integradas: os espaços de alimentação fazem parte do projeto pedagógico, promovendo convivência, cuidado e educação alimentar.

Ambiente como educador: o espaço físico é pensado como um “terceiro educador”, que comunica valores, desperta curiosidade e convida à exploração.

Documentação pedagógica: registros visuais e textuais tornam visíveis os processos de aprendizagem, permitindo reflexão, diálogo e valorização do percurso das crianças.

Grupo coordenador: um coletivo de referência que orienta, acompanha e sistematiza o trabalho pedagógico, garantindo coerência e continuidade.

Participação das famílias: pais e responsáveis são considerados parceiros fundamentais, colaborando ativamente na construção da experiência educativa.

Esses princípios refletem a ideia de que a criança é um sujeito de direitos, rica em potencialidades, que aprende por meio das “cem linguagens”, as múltiplas formas de pensar, expressar e se relacionar com o mundo defendidas por Loris Malaguzzi.

Porvir – Como é possível levar os princípios da abordagem Reggio Emilia para as etapas seguintes da educação, especialmente quando há pressão por cumprir currículos e o vínculo das famílias com a escola tende a se enfraquecer?
Paola Strozzi:
Quanto a como levar os princípios da abordagem de Reggio Emilia para as fases posteriores da educação, acredito que, em Reggio Emilia, conseguimos isso, em parte, pela forma como documentamos a abordagem — por meio de testemunhos visuais e relatos de experiências reais.

Na Itália, tornamo-nos interlocutores na elaboração dos currículos nacionais: colegas que trabalharam por muitos anos nas escolas e creches — e também colaboradores atuais da Reggio Children — foram convidados pelo Ministério da Educação a contribuir, especialmente nas partes do currículo relativas à faixa de 3 a 6 anos e, desde 2017, também à de 0 a 3 anos.

Faço um convite para que as pessoas, no mundo todo, leiam atentamente os currículos propostos pelos respectivos ministérios, pois muitas vezes encontro textos muito bonitos, abertos e receptivos a mudanças e melhorias nas práticas educativas reais. No entanto, o que acontece muitas vezes é que as possibilidades de aprendizagem das crianças e o bom trabalho dos professores acabam sendo limitados pela repetição de práticas pouco relacionadas aos valores do currículo e mais alinhadas a manuais e apostilas — que são um ótimo negócio comercial, mas podem trair a possibilidade de termos uma escola nova, inovadora e justa para crianças e famílias.

Porvir – É possível integrar a tecnologia às linguagens infantis sem substituir as experiências sensoriais e coletivas?
Marina Castagnetti:
Dentro do projeto educativo de Reggio Emilia, em nossas creches e escolas, damos grande importância ao ambiente, às qualidades do espaço onde vivemos diariamente com as crianças. É fundamental que haja bem-estar: crianças felizes juntas, professores felizes com as crianças e pais que se reconhecem no projeto educativo construído dia após dia.

O ambiente é equipado com múltiplas linguagens e oportunidades, para dar crédito e confiança às competências das crianças. Projetamos espaços que permitam explorar e transformar, pois as crianças são grandes transformadoras — damos a elas essa possibilidade e sabemos reconhecê-la por meio da observação, documentação e interpretação do que acontece no dia a dia.

Documentamos essas experiências em vários níveis, como a mostra Mosaico, aqui em São Paulo, ou a Border Crossing, sobre linguagens digitais e tecnologia. Assim, a tecnologia e os dispositivos digitais se integram às experiências multissensoriais que as crianças vivem cotidianamente. Não é algo separado, mas sim um modo fluido de interpretar sua presença, integrando o analógico e o digital para estimular flexibilidade, curiosidade e surpresa — elementos importantes para que crianças e adultos possam continuar se encantando juntos.

Porvir – Como a abordagem deve inspirar contextos e culturas diferentes, como no Brasil?
Paola Strozzi –
Quando nos pedem para definir o “encantamento” na vida escolar e de que forma a nossa abordagem pode inspirar contextos e culturas diferentes por meio da maravilha, lembro que Malaguzzi falava do trabalho dos professores como o de “profissionais da maravilha” — pessoas que se encantam junto com as crianças pelo que veem e pelo que elas já conhecem.

Isso também está ligado ao tema das diferentes culturas. No Brasil, por exemplo, com sua diversidade cultural, significa compreender, expressar e oferecer a possibilidade de se expressar por meio de linguagens valorizadas em certas culturas, como o canto, a narrativa e o movimento. É encantar-se com isso e, a partir daí, propor às crianças novas formas de pesquisa e experimentação.

Porvir – O que significa o “encantamento” no cotidiano escolar e como ele é cultivado?
Paola Strozzi –
Antes de tudo, o encantamento é a mola propulsora da pesquisa: se você não se encanta, não começa nem a buscar. As crianças têm muito com o que se encantar, com diferentes linguagens e recursos do lugar onde vivem — e nós também podemos aprender com isso. É uma abordagem muito dialógica, baseada nessa capacidade de se maravilhar.

Marina Castagnetti – Sim, Loris Malaguzzi dizia que “o encantamento é filho da criatividade”. É preciso, como educadores, um compromisso real em se fazer perguntas sobre os contextos em que vivemos diariamente com as crianças.

Os contextos precisam permitir experiências e processos criativos. Muitas vezes, na escola e nos ambientes educativos, tendemos a normalizar, estereotipar e uniformizar as experiências — exatamente o oposto do que buscamos em Reggio Emilia. Queremos manter a originalidade das vivências, e, por meio da pesquisa e documentação, evitar o achatamento que tira o encantamento e a maravilha do nosso cotidiano.

Porvir – A Scuola Diana, escola municipal de educação infantil, é considerada um marco na consolidação da abordagem Reggio Emilia. Em 1991, foi eleita pela Revista Newsweek uma das melhores escolas do mundo. Que aprendizados e lembranças vocês trazem dessa experiência?
Marina Castagnetti:
Paola e eu vivemos essa experiência por um longo período. Encerramos nossa trajetória profissional após mais de 42 anos de trabalho, mas continuamos, graças à colaboração com a Reggio Children, a ter oportunidades de encontros internacionais para compartilhar a nossa experiência.

Nossa matriz de experiência foi, em especial, na Escola Diana, onde tivemos a grande sorte e coincidência de trabalhar, durante anos, junto a Loris Malaguzzi, Vea Vecchi e todo o grupo histórico de professoras. Tivemos a oportunidade real de experimentar, inventar um novo modo de estar com as crianças e documentar processos que, ao longo do tempo, alimentaram a Abordagem Reggio Emilia.

Acredito que um dos elementos mais fortes que levo comigo é ter vivido as competências e inteligências das crianças junto às das professoras — com generosidade, disponibilidade e troca de pontos de vista. Essa prática mostra um modo possível de pensar juntos e de acreditar que os valores da democracia, do diálogo e do confronto construtivo podem se realizar dentro dos contextos educativos.

Por: Porvir

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